segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Rosamundo no banheiro

As histórias de Rosamundo — o distraído — são verdadeiras. E bárbaras. Teve o caso do dia em que ele comprou o livro Tia Zulmira e Eu, do famoso escritor brasileiro Stanislaw Ponte Preta, que todo mundo conhece como um dos luminares da nossa literatura moderna.

Rosamundo comprou o livro no dia do seu lançamento (quer dizer, lançamento do livro, não de Rosamundo). Pois comprou e ficou tão interessado que começou a ler na porta da livraria. Chamou um táxi, entrou no dito, e mandou tocar para o edifício onde mora, percorrendo todo o itinerário com a cara enfiada no livro, a ler gulosamente o fabuloso escritor.

Ora, se Rosamundo é distraído no simples, imaginem a ler um livro com tanto interesse. Tinha que dar em besteira.

Rosamundo saltou do táxi, pagou a corrida, e entrou no prédio a ler o livro. Chamou o elevador, saltou no seu andar, abriu a porta e — após tirar o paletó e colocar o livro sobre um móvel — foi direto para o banheiro, tomar seu banho rápido, para poder continuar, a leitura.

No banheiro, abriu o chuveiro e foi entrando debaixo, a cantar o fado aquele que diz "só porque és riquinlegante, queres que eu seja seu amante, etc., etc." Ele detesta fados, mas está sempre distraído. Tão distraído que, acabado o banho, olhou para fora do boxe e viu que não tinha toalha. Então abriu a porta do banheiro e berrou:

— Como é, mulher. Nesta porcaria desta casa não tem toalha?

A mulher trouxe a toalha e enfiou a mão pela porta entreaberta do banheiro.

Rosamundo, molhado e pelado, quis fazer um agradinho nela e puxou-a pelo braço para dentro do banheiro. E só então morou no vexame. A mulher que puxara era a do vizinho. Rosamundo tinha entrado no apartamento de baixo.
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Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto).
Fonte: O MELHOR DE STANISLAW - Crônicas Escolhidas - Seleção e organização de Valdemar Cavalcanti - Ilustrações de JAGUAR - 2.a edição - Rio - 1979 - Livraria José Olympio Editora

Aventuras de Rosamundo

Distraído, mas distraído mesmo, era Rosamundo das Mercês, que durante certa época foi sócio de Mirinho (os dois tinham um escritório de vender apólices falsas). Aliás, o primo acabou com a sociedade porque Rosamundo era distraído demais e prejudicava o negócio.

Um dia Rosamundo combinou com uma vida-torta, com a qual ele mantinha um caso amoroso legal, que jantariam na casa dela. Quando chegou a noitinha, Rosamundo fechou o escritório e telefonou para casa.

Rosamundo telefonou pra casa e quando a mulher atendeu, foi logo dizendo: — "Hoje não vou jantar. Dê um beijo nas crianças". Em seguida desligou o telefone e ligou para a outra. No que ela disse alô, Rosamundo meteu uma voz doce e disse:

— Querida.

Ela respondeu:

— O que é?

E Rosamundo, todo derretido: — Prepara um jantarzinho bem gostoso que eu vou levar uma surpresa para você. — E como ela insistisse em saber o que era, Rosamundo foi dando logo o serviço: era um colar de pérolas legalzinho, que lhe custara 50 pacotes (o preço na hora ele não disse, mas pensou).

Daí Rosamundo desceu, pegou um táxi e se mandou para a casa da vida-torta, onde chegou meia hora depois, assoviando "Tico-tico no fubá" em ritmo de valsa.

Era distraído demais, Rosamundo. Foi entrando e abraçando a dona e colocando logo o colar no seu pescoço e pedindo um beijinho e dizendo que estava com fome e querendo saber o que tinha para comer.

Ela, encantada com o presente, agradeceu muito e perguntou se Rosamundo estava maluco. Já nem o esperava mais pra jantar. Pois se meia hora antes ele telefonara dizendo que não viria mais... e ainda mandara dar beijos nas crianças. E meio desconfiada, perguntou: — "Que crianças?"

Rosamundo nem respondeu. Caiu sentado numa poltrona, deu um tapa na testa e exclamou:

— Puxa vida... se foi pra cá que eu telefonei dizendo que não vinha jantar, então foi pra minha mulher que eu prometi levar o colar.
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Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto).
Fonte: O MELHOR DE STANISLAW - Crônicas Escolhidas - Seleção e organização de Valdemar Cavalcanti - Ilustrações de JAGUAR - 2.a edição - Rio - 1979 - Livraria José Olympio Editora

Telefone com sotaque

Entro na redação e o companheiro avisa: — "Telefonaram pra ti. Do Paris-Match. O correspondente de lá".

No meu espanto, balbucio: — "O Paris-Match? Comigo?". Qualquer telefonema é uma janela aberta para o infinito. Muitas vezes a glória internacional começa no telefone. Tirando o paletó, armei uma fantasia paranóica.

Seria talvez uma entrevista. E já imaginava um retrato meu de página inteira. Sair na revista que só promove Stalin, Buda, Mao Tsé-tung, Roosevelt, o príncipe de Gales e o decote de Elizabeth Taylor (decote tão robusto, tão bem alimentado).

E, como um telefonema do Paris-Match é altamente promocional, já os companheiros cravavam em mim o olho da inveja. E, súbito, o telefone bate novamente. Numa tensão sufocante, fecho os olhos e espero o chamado. Ouço a voz: — "Nelson, pra ti!". Saio atropelando mesas e cadeiras, como um centauro. Digo, arquejante: — "Alô! Pronto!". E, como a voz não tem sotaque, rilho os dentes de frustração. Era o alfaiate.

Destratei-o: — "Eu não sou o único brasileiro que deve! Sossega o periquito!". Bati com o telefone.

Sentei-me. E já me afligia e humilhava a gíria sórdida. No momento em que a imprensa européia me procurava, não me perdoei aquele "sossega o periquito". No meu canto, pedi pelo amor de Deus um telefonema com sotaque. Três ou quatro minutos depois, sou chamado, outra vez. Ainda sondei o contínuo: — "Tem sotaque?". "Sim."

Da minha mesa para o telefone, tive tempo de imaginar o seguinte: — estréia de minha peça Vestido de noiva em Paris. Na frisa oficial, estaria De Gaulle, com todas as medalhas escorrendo, em ouro, pelo peito. E, ao abaixar o pano, o Herói, de pé, pedindo bis, como na ópera.

Chego ao telefone. Digo: — "Pronto, pronto!". E ouço o bendito sotaque.

Era o homem.

Na minha dispnéia emocional, estou dizendo: — "Pois não, pois não!". E fiquei ouvindo o enviado do Paris-Match.

Logo nas primeiras palavras, o colega esvaziou-me de toda a mania de grandeza. Não estava interessado em mim, nem em meus textos, nem nas minhas metáforas. Vinha falar do Britto. Queria informações urgentes sobre o Britto. A princípio, não liguei o nome à pessoa. Britto? Que Britto? O sotaque falou no Jornal do Brasil (sempre este órgão fatal). Só então fez-se luz em mim. Já que o autor era outro, e não eu, comecei a achar execrável o sotaque.

Eis o fato: — chegara ao Velho Mundo a notícia de que o Britto, através do Jornal do Brasil, declarara guerra de morte às cores. Era um desafeto das cores e um fanático do preto-e-branco. Não podia passar por uma porta de tinturaria sem náuseas profundíssimas.

Comecei a ver, ali, um mistério, um suspense. Que dizer do Britto? Achei a seguinte solução: — ia reunir uns dados e, em seguida, escreveria uma crônica sobre a vida e a personalidade do nosso patrício. Estou falando, aqui, no momento, para o Paris-Match.

Quem é o Britto? Geralmente, cada qual é um só. Buda foi Buda, exclusivamente Buda e tão-somente Buda, do berço ao túmulo. E assim Maomé, e assim são João Batista, e assim Nero ou Stalin. No presente caso, temos três Brittos num só: — o do Jornal do Brasil; o futuro ministro das Relações Exteriores; e o beque do Vasco. Há um quarto: — o Britto doutor, único doutor da imprensa brasileira. Portanto, os três são quatro.

Quando começou a sua projeção internacional?

Vejamos. Domingo passado, a TV Globo iniciou, no Brasil, a época da televisão em cores. Se perguntarmos a um paralelepípedo analfabeto, ou a uma cabra vadia, ou a um bode de charrete se a televisão em cores é um passo maravilhoso, a resposta será unânime e taxativa: — "Está na cara!". Não pensa assim o beque do Vasco. Ao saber da novidade, convocou uma reunião de editorialistas.

Como se sabe, o Jornal do Brasil não diz um "oba" sem uma assembléia prévia e douta. Sob a presidência do dr. Britto, as maiores cabeças da casa discutem o "oba", em toda a sua complexidade. Se aquelas inteligências preferem o "oba", o Jornal do Brasil, no dia seguinte, diz o "oba" em vibrante editorial. Pois bem. Também a televisão em cores mereceu essa grave, erudita, clarividente reunião.

Parecia uma sessão histórica da Câmara dos Comuns. Por vezes, os debates se acaloraram. Mas, mesmo no fogo da controvérsia, todos conservavam um tom dignamente crespo. O primeiro a falar foi o dr. Britto. Pedia licença para referir um fato, dos mais desprimorosos. E contou. Dias antes, vinha ele passando pela Avenida quando viu, na esquina, três cores: — o verde, o grená, o branco. Por se tratar de cores conhecidas, ele resolveu cumprimentá-las. Agora vem o horror: — as três cores viraram-lhe o rosto.

Ante esse ultraje direto e crudelíssimo, o dr. Britto voltou atrás e perguntou-lhes: — " Vocês não me cumprimentam?".

Resposta: — "Nós somos Fluminense. E você Vasco". E o dr. Britto, que já não gostava do amarelo, tinha agora razões de honra para abominar o verde, o grená e o branco. Na cabeceira da mesa, em pé, de fronte alçada, bradou: — "Ao Fluminense, nem água!". Os taquígrafos, de orelhas ávidas, não perdiam uma palavra.

Imediatamente, fez-se uma comissão de estilistas (os mais finos da folha de pagamento) para redigir uma nota feroz que desagravasse o chefe. Lá estava o dr. Britto, com os brios mais eriçados do que as cerdas bravas do javali. E a página foi feita e, no dia seguinte, publicada, num luminoso "Informe JB". É um primor ou, como diziam as velhas gerações, uma tetéia. Nada de cores.

Se o poente do Leblon não é em preto-e-branco, azar da paisagem e abaixo o poente. A nossa baía é metida a azul. Pau nela!

Portanto, a televisão em cores deve ser varrida a patadas. E o "Informe JB" chega ao sublime quando malha a miséria colorida. O certo, o correto, o patriótico é a miséria em preto-e-branco, é a mortalidade infantil em preto-e-branco, é o subdesenvolvimento em preto-e-branco.

Alguns realistas, que sempre os há, poderão dizer que a ira do Jornal do Brasil tem razões sordidamente competitivas. Quem ruge contra a televisão em cores é o jornal que não tem a televisão, nem as cores. Seja como for, o velho órgão esta ventando fogo por todas as narinas.

Assim é o homem. Mas justiça se lhe faça: — aos poucos, etapa a etapa, vai conseguindo tudo o que quer.

Dirá alguém que nunca passará de "futuro" ministro do Exterior. Não importa: — é um título. E os contínuos já o chamam de "ministro", "sr. ministro" e, até, "dr. ministro". Faltava-lhe a consagração do escrete. São Januário era pouco para a sua fome. É agora zagueiro da seleção.

E se o Paris-Match dedicar ao nosso patrício as mesmas sete páginas que concede a De Gaulle e ao busto de Elizabeth Taylor — não faz mais que a obrigação.

[9/8/1968]
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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.