quinta-feira, 13 de outubro de 2011

O elegante e intempestivo Heleno de Freitas

O mais clássico, técnico e elegante centroavante que pisou nos gramados brasileiros chamava-se Heleno de Freitas. Filho de família rica, formou-se em Direito mas nunca exerceu o bacharelado. Muito provavelmente porque a magia do futebol já o havia conquistado. Entrou na história do Botafogo como um dos maiores goleadores, embora seu único título tenha sido conquistado no Vasco, em 1949. Vestiu a camisa da Seleção Brasileira dezoito vezes, assinalando 15 gols.

Heleno de Freitas nasceu em São João Nepomuceno, MG, em 12/02/1920, e faleceu em  Barbacena, MG, em 08/11/1959. Advogado, boêmio, catimbeiro, boa vida, irritadiço, galã, Heleno era homem de boa aparência, mas quase intratável. Depois de onze anos jogando futebol, entrou para a história como um dos maiores craques do futebol sul-americano.

Dono de um gênio intempestivo, que muitas vezes o fazia ser expulso de campo e lhe trazia muitos inimigos, Heleno de Freitas, apelidado do "Gilda" por seus amigos do Clube dos Cafajestes e pela torcida do Fluminense, por seu temperamento e por este ser o nome de uma personagem da atriz americana Rita Hayworth em filme de mesmo nome, foi o símbolo de um Botafogo guerreiro, que nunca se dava por vencido.

Descoberto por Neném Prancha no time do Botafogo de praia, Heleno, que iniciou a carreira no Fluminense Football Club, chegou ao time principal do Botafogo em 1937, com a responsabilidade de substituir o ídolo Carvalho Leite (goleador do tetracampeonato estadual, de 1932 a 35) e não decepcionou a torcida, com grande habilidade e excelente cabeceio.

Dono de uma postura elegante dentro e fora de campo, o jogador de cerca de 1,82 metros foi o maior ídolo alvinegro antes de Garrincha, mesmo sem nunca ter sido campeão pelo clube. Marcou sua passagem pelo Glorioso com 209 gols em 235 partidas, tornando-se o quarto maior artilheiro da história do clube. Deixou General Severiano em 1948, quando foi vendido ao Boca Juniors, da Argentina, na maior transação do futebol brasileiro até então.

Ainda atuou pelo Vasco, onde foi campeão carioca de 1949 com o Expresso da Vitória, pelo Atlético Junior de Barranquilla (da Liga Pirata da Colômbia), pelo Santos e pelo América, onde encerrou a carreira, porém tendo jogado apenas uma partida pelo clube de Campos Sales, sua única no estádio do Maracanã, sendo expulso aos 35 minutos do primeiro tempo, após acertar um carrinho violento em um zagueiro adversário. Ainda tentou, depois, voltar aos campos pelo Flamengo por indicação de Kanela, mas se desentendeu com os jogadores do rubro-negro num jogo-teste e não foi aceito.

Heleno, o craque, o artista da bola, o mito do futebol, o artista das multidões, o craque galã, o diamante branco, a elegância do futebol, são adjetivos, que perfeitamente se enquadram a figura ímpar de um gênio chamado Heleno e alguns desses fazem parte do somatório de homenagens, que ao decorrer dos anos serviram também como meio de imortalizar o grande ídolo.

Foi com a bola nos pés, levando a torcida ao delírio que Heleno deixou a marca de sua genialidade, se tornando uma das mais ricas histórias do futebol brasileiro. Seu futebol encantou o mundo e lhe rendeu fantásticas expressões e frases de grande efeito, como a que se encontra na estátua em sua homenagem em Barranquilla na Colômbia "El Jogador".

Vida pessoal

Heleno estudou no Colégio São Bento e depois obteve o bacharelado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade de Direito do Rio de Janeiro (atual Faculdade Nacional de Direito da UFRJ). Era considerado membro da alta sociedade, com amigos empresários, juristas e diplomatas. Seu pai era dono de um cafezal e ainda cuidava de negócios de papel e chapéus.

Sua vida foi marcada por vícios em drogas como lança-perfume e éter. Isto o fez tentar se auto-eletrocutar num treino do Botafogo. Boêmio, era freqüentador de diversas boates do Rio de Janeiro.

Enquanto esteve na Argentina, suspeitou-se que Heleno teve um caso amoroso com Eva Perón, fato nunca comprovado.

Teve um filho apenas, Luiz Eduardo, com sua esposa Ilma. Porém, ela fugiu para Petrópolis por conta do temperamento de Heleno de Freitas em 1952. Luiz Eduardo só teve notícias sobre o pai com 10 anos de idade por ter perdido contato desde a mudança, justamente sobre seu falecimento.

Heleno teve complicações com sífilis, que o deixou louco. Veio a falecer no ano de 1959, em um sanatório de Barbacena, onde se internou seis anos antes, em 1953, com apoio da família.

Sua vida é retratada no filme “Heleno” estrelado por Rodrigo Santoro que fez o papel-título e Alinne Moraes, que fez sua esposa Ilma.

Fontes: Wikipédia; Revista Placar.

Domingos da Guia

Numa época em que beque bom era aquele que entrava duro e dava chutões para a frente, o zagueiro-central Domingos da Guia marcava a bola, que geralmente matava no peito para, em seguida, driblar os atacantes adversários dentro da própria área e fazer um passe milimétrico em direção do meio-de-campo. Não é à toa que ele é considerado o maior zagueiro do futebol brasileiro de todos os tempos e que seu surgimento assinala o nascimento do defensor técnico.

Domingos da Guia (Domingos Antonio da Guia), um dos melhores zagueiros de todos os tempos, nasceu no bairro de Bangu, Rio de Janeiro, em 19/11/1912, e faleceu na mesma cidade em 18/05/2000. Originário de uma família de lavradores fez apenas o curso primário, e aos 16 anos, entrou para a equipe principal do Bangu, assim como seus três irmãos e mais tarde, seu filho. Sua ligação com esse clube foi tão grande que seu nome é citado no hino do Bangu.

Estreou na Seleção Brasileira em 1929, vencendo a Hungria por 6 a 1. Em 1932, época em que o futebol brasileiro começou a se profissionalizar, trabalhou como agente da Saúde Pública participou da seleção que venceu a Copa Rio Branco, no Uruguai, fechou contrato com o América e largou o emprego.

Apenas seis dias depois foi contratado pelo Vasco, e em menos de dois meses o Nacional, do Uruguai, o contratou por um dos maiores salários da época. Foi campeão uruguaio de 1933. Voltou ao Rio em 1934, jogou pelo Vasco da Gama e ganhou o campeonato carioca de 1934.

Domingos da Guia transferiu-se para o Boca Juniors e conquistou o campeonato argentino de 1935. Em 1937 foi contratado pelo Flamengo, tornando-se campeão carioca em 1939, 1942 e 1943. Em 1938 participou da Copa do Mundo na França.

Em 1943 transferiu-se para o Corinthians. Em São Paulo não conseguiu nenhum título. Em 1947, voltando ao Bangu, abandona os campos como jogador.

Em 1952, depois de passar pelo Olaria carioca como técnico, retornou ao serviço público, pelo qual se aposenta como fiscal de renda.

Domingos da Guia último à direita é homenageado no hino do Bangu.

Zagueiro clássico e de excelente técnica, é apontado como um dos melhores do futebol brasileiro. Sua "marca registrada" era sair driblando os atacantes adversários. Tal jogada de extrema habilidade e risco, mas que sempre foi perfeitamente executada por Domingos da Guia, ficou conhecida como Domingada.

Pela seleção brasileira foram 30 jogos, sendo 19 vitórias, 3 empates e 8 derrotas. Jogou a Copa do Mundo de 1938, tendo o Brasil ficado em terceiro lugar. Com a seleção ele foi campeão da Taça Rio Branco, em 1931 e 1932, e da Copa Rocca em 1945.

Domingos é pai de Ademir da Guia, maior ídolo da história do Palmeiras e irmão de Ladislau da Guia, o maior artilheiro da história do Bangu (com 215 gols), clube que revelou as duas gerações de craques.

Foi considerado por Obdulio Varela o melhor jogador do Brasil. "O melhor que vocês já tiveram foi Domingos, completo. Campeão lá [Brasil], aqui [Uruguai] e na Argentina", declarou a um repórter brasileiro em 1970.

Fontes: Wikipedia; Revista Placar; Que Fim Levou?; Algo Sobre.

Os assassinados

Disse não sei quem que os homens se dividem em dois grupos: — "assassinos" e "assassinados". Ou o sujeito mata ou, se não mata, morre. Portanto, segundo esse autor, cujo nome não me ocorre, não há hipótese de morte natural.

Mesmo os "assassinos" são, por sua vez, "assassinados". Por isso, o francês Paul Valéry chegou a imaginar, para si mesmo, o seguinte epitáfio: "Aqui jaz Paul Valéry — assassinado pelos outros".

Houve, porém, um momento, na minha vida, em que "todos" eram assassinos. Foi quando morreu meu irmão Roberto. Roberto Rodrigues. Não sei se me entendem. O que eu quero dizer é que "todos" eram assassinos, e Roberto, a única vítima. Foi ferido no dia 26 de dezembro de 1929.

Ele conversava comigo. Uma voz pediu: — "Pode-me dar um minuto de atenção?". Era na redação da Crítica. Os passos caminharam até à sala seguinte. Porta de vaivém. Roberto faz a volta da mesa e caminha para lá. Por minha vez, encaminho-me para a escada. Ia tomar um refresco no botequim da esquina. Paro com o estampido.

Houve uma pausa entre o tiro e o grito (e foi um grito de quem vai morrer). Um dos presentes era o detetive Garcia. om seu reflexo profissional, tirou o revólver; e foi de arma em punho que invadiu a sala da frente. Roberto está de joelhos, com as duas mãos agarrando a mão que o ferira.

Da serraria do lado, os operários subiam a velha escada gasta de muitas gerações. Roberto tinha 23 anos, era o homem mais bonito que vi até hoje. Uma bala interrompeu, para sempre, a obra que amadurecia na sua alma atormentada. Levado para o pronto-socorro, lá morreu dois dias depois.

Eu continuava a ouvir a voz: — "Vim matar Mário Rodrigues ou um dos seus filhos". Paro de escrever. A voz está dizendo, como há 39 anos atrás: — "Mário Rodrigues ou um dos seus filhos".

A redação armada em câmara-ardente. Eu, com dezessete anos, era abraçado. Um velho agarrou-se a mim: — "O nosso Roberto". E eu tinha pena, vergonha, remorso de estar vivo.

Muitos anos depois, na minha peça Anjo negro, há esta imagem: "No enterro sobra sempre uma flor. Uma flor fica boiando no soalho". E, de fato, naquele dia, eu vi uma flor boiando no soalho. Não sei se alguém a pisou. Passei toda uma madrugada velando o sono dos círios.

O último a se despedir de Roberto foi meu pai. "Eu te vingo!", soluçou. No fim, chegou Melo Viana, o vice-presidente da República. Abraçou-se a meu pai, que repetiu: — "Essa bala era para mim". E, depois, o enterro saindo. Era uma manhã de tanto céu que a própria sombra era azulada, lunar.

Dois meses depois, morria meu pai. Sua agonia durou quinze dias. Morávamos numa colina. E, na última noite, da esquina já se ouvia a sua dispnéia. Morreu tão órfão do próprio filho.

Eis o que aprendi com Roberto e meu pai: — o importante é não matar. Nada mais doce do que nascer, viver, envelhecer e morrer. E não ser jamais assassino.

Nunca me esqueço do que aconteceu com um dos meus amigos. Gostou de uma menina e, no final da tarde, os dois passeavam, na praça Saenz Peña, de mãos dadas. Um dia, a menina crispa a mão no braço do bem-amado; diz: — "Olha Fulano". Fulano era o ex-namorado da garota, um brutamontes, que aprendia judô, caratê etc. etc. E, segundo se dizia, estava esperando, para qualquer momento, o seu primeiro ataque epilético. O ex-namorado barrou-lhe a passagem; abotoa o meu amigo: — "Quando se encontrar comigo... Cala a boca. Quando se encontrar comigo, atravesse a rua. Ou lhe parto a cara". O ofendido, branco, não disse uma palavra. E o outro: — "Agora, suma. Ande. Suma". O rapaz baixou a cabeça e correu.

De noite, a moça liga para ele, aos soluços. Quase não podia falar. O humilhado, o ofendido, só dizia: — "Calma, meu bem, calma". Por fim, mais controlada, disse tudo: — "Você vai-me fazer um favor. Vai dar um tiro nesse miserável". Num espanto aterrado, ele balbuciou: — "Tiro, eu? Meu bem. Eu não sou de dar tiros". E a outra: — "Quer dizer que você é covarde?". Respondeu: — "Não sei se sou covarde. Assassino, não sou". Ela esganiçou-se no telefone: — "Escuta! Escuta! Na próxima vez, ele vai-te dar na cara. E você vai apanhar calado?". Disse, manso como um santo: — "É mais forte do que eu. Não posso brigar fisicamente. Apanho, mas não mato. Nada me fará matar!".

Romperam no telefone. E a menina acabou voltando para o ex-namorado.

Eu compreendo tanto os que não matam. Gostaria de explicar. Quando matam alguém, é como se Roberto estivesse morrendo outra vez. Foi assim com o primeiro dos Kennedy. Uma bala arrancou seu queixo plástico, crispado, vital. Então senti como se fosse Roberto, novamente Roberto. E, por um momento, tive a ilusão de que, dois meses depois, meu pai morreria também, como em 1930. E assim, quando balearam o outro Kennedy, Bobby. E onde quer que alguém seja assassinado por alguém — cria-se entre mim e o que morreu uma relação obsessiva, implacável.

Há dias, trucidaram, em Pernambuco, o jovem padre Antônio Henrique Pereira Neto. Até o momento em que bato estas notas, não se sabe quem matou e por que matou. Segundo o comunicado da arquidiocese de Olinda e Recife, o padre Antônio Henrique, além de sofrer uma série de sevícias hediondas, foi amarrado e enforcado. Em seguida, vararam de balas o cadáver.

Começam então as hipóteses desesperadas. Autoridades policiais do Recife acham que se trata de um crime passional. Ao passo que autoridades eclesiásticas afirmam que foi "crime político". Mas "passional" ou "político", o que importa é a hediondez do fato.

Dizia aquele personagem dostoievskiano: — "Se Deus não existe, tudo é permitido".

Para muitos brasileiros, Deus está morto. E para esses, para os "assassinos de Deus", tudo é permitido. Que limites, dúvidas, arrependimentos poderão travar os "cristãos-marxistas", os "cristãos-sem vida eterna", os "cristãos-sem sobrenatural", os "cristãos-sem Cristo"? Falei da "esquerda católica". Um dia, ela terá de ser julgada.

Na confissão de ontem, falei de um dos pronunciamentos mais claros de d. Hélder. Sem nenhum disfarce, declara: — "Respeito aqueles que, em consciência, sentem-se obrigados a optar pela violência; não a violência fácil dos guerrilheiros de salão, mas a daqueles que provaram sua sinceridade com o sacrifício de suas vidas". Não. Aí não está dito tudo. Provaram a sinceridade morrendo, por azar, e matando, por querer.

Antes de morrer, Guevara matou. E, repito, morreu sem querer e matou querendo. Também Camilo Torres. Esse cristão-homicida empunhou o fuzil, não para morrer, mas para matar.

E diz mais o arcebispo de Olinda e Recife: — "Parece-me que as memórias de Camilo Torres e de Che Guevara merecem tanto respeito quanto as do pastor Martin Luther King". Não, mil vezes não! Luther King não morreu de fuzil, faca ou revólver na mão, como Guevara ou Camilo Torres. Não matou, nem quis matar. Não pregou o ódio, a "violência justificada" católica. Morreu de amor e por amor.

Os que pregam o ódio não podem chorar o jovem sacerdote do Recife.

Todos nós temos um projeto de Brasil. O da esquerda católica é o Brasil do ódio. O Brasil do sangue, o anti-Brasil, um Brasil sem Deus. Este país não teve jamais um drácula.

E, súbito, os possessos querem que nos transformemos em 80 milhões de dráculas bebendo o sangue uns dos outros.

[17/6/1968] 
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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

A messalina gaga

Tenho um amigo curiosíssimo. Dá-se comigo há mais de trinta anos. Mas não há, digamos assim, continuidade em nossos encontros. De vez em quando, desaparece; e, de vez em quando, volta (é cíclico como a minha úlcera).

Quando some, sua ausência tem a densidade da morte. E, quando reaparece, está sempre comigo, grudado a mim como um gêmeo. Mas eu disse "amigo curiosíssimo". Pelo seguinte: — nunca sei se ele se chama Meireles ou Marcondes. Pode ser Marcondes e pode ser Meireles.

Tal singularidade empresta à nossa relação um tom meio alucinatório. Eis o que eu queria dizer: — não o via há mais de seis meses. E, ontem, de repente, dou com o Meireles na esquina, em cima do meio-fio, esperando que o sinal abrisse para os pedestres.

Quando nos vimos, foi uma festa recíproca eescandalosa. O Meireles caiu nos meus braços e eu nos dele. Dizia ele, de olho rútilo: — "Há quanto tempo!". Em seguida, gabou-me a aparência. Disse e repetiu: — "Você está ótimo, ótimo". E eu: — "Você também".

Afirmei que a sua aparência era um poema. Depois dos mútuos rapapés, o Marcondes (ou será Meireles?) limpa um pigarro e começa: — "Preciso de um favor teu". Digo-lhe: — "Dois". Põe a mão no meu ombro: — "É o seguinte: — faz outra entrevista imaginária com o d. Hélder, faz".

Era esse o favor. No meu espanto, exclamo: — "Outra vez?".

Tentei explicar-lhe que um colunista diário vive da variedade de assuntos e de figuras. O leitor não gosta de fixações. E repeti: — "O segredo é a variedade". O Marcondes não se conforma. Retruca com um argumento engenhoso: — "D. Hélder é a própria variedade, é a antimonotonia".

Terminou com um novo apelo: — "Te peço, encarecidamente, uma nova entrevista imaginária com o d. Hélder".

Digo, por fim: — "Está bem. Farei". O Marcondes se despediu num arroubo: — "És uma mãe!".

Isso foi ontem. Hoje, estou na máquina, escrevendo mais uma imaginária. Como se sabe, nada mais falso do que a entrevista verdadeira. O entrevistado só diz o que sente, o que pensa, o que sabe, nas entrevistas inventadas. Inventadas da primeira à última linha e, por isso mesmo, de uma imaculada veracidade. Tais entrevistas imaginárias só ocorrem à meia-noite em ponto.

Eis a paisagem obrigatória: — um terreno baldio que tenha, no alto, uma lua de sangue e, por fundo, a gargalhada dos sátiros e duendes. Além de mim e d. Hélder, a única presença consentida é a de uma cabra vadia. O arcebispo foi pontualíssimo. Chega exatamente quando o sino da matriz dava as doze badaladas. Alhures, uma coruja pia. D. Hélder pergunta: — "E o pessoal? Não vem ninguém?".

Explico-lhe que o charme das entrevistas imaginárias é o pudor, o sigilo, o mistério. É preciso que ninguém as veja e ninguém as ouça, a não ser a cabra. D. Hélder vira-se: — "Em que jornal trabalha a cabra?". Respondo-lhe que a cabra tem vários defeitos, menos o de ser jornalista.

Esclareço ainda: — "A única função da cabra é paisagística". A frustração do sacerdote foi total. Fechou a questão: — "Só falo para jornal, rádio, televisão". Pergunto: — "É sua última palavra?". Era.

E, já que não havia outro remédio, tratei de convocar uma imprensa também imaginária para o local.

Instantaneamente, apareceram lá o caminhão da Globo e os locutores-volantes, o Washington Rodrigues, o Pallut, o Paradelas, fotógrafos, correspondentes estrangeiros, a BBC de Londres etc. etc. Essa platéia espectral foi um afrodisíaco para o bom padre. O Justino Martins surgiu e prometeu uma capa de Manchete. O Cláudio Mello e Souza daria uma capa de Fatos & Fotos. Mas d. Hélder parecia ainda insatisfeito: — "E a Life não mandou ninguém?".

Tive que providenciar um enviado imaginário da Life.

Todos presentes, comecei: — "D. Hélder, a diretora de um colégio religioso de São Paulo disse o seguinte: — que ser prostituta é uma profissão como outra qualquer. O senhor concorda?". D. Hélder não respondeu logo. Semicerrou os olhos, juntou as mãos, como se rezasse. Os faunos e as ninfas, que costumam infestar os terrenos baldios, vieram espiar. Suspense aterrador.

E, súbito, o arcebispo pula: — "Não! Não!".

Flashes assustam os grilos e os sapos do terreno baldio. Todos sentiram que d. Hélder ia fulminar a iniqüidade. De braços abertos, vai falando: — "Nunca, jamais! Ser prostituta não é uma profissão como outra qualquer. Absolutamente. É uma profissão que exige prendas raras. Raras".

Instalou-se, ali, no mato, o caos profundo. A imprensa imaginária já não sabia se d. Hélder estava contra ou a favor. Os taquígrafos não perdem um suspiro do orador. Mais didático, d. Hélder está falando: — "Qualquer uma pode ser datilógrafa, não é exato? Mas uma messalina tem que possuir dons outros, atrativos especiais. Uma gaga não pode ser messalina. Uma bruxa de disco infantil não pode fazer a prostituição. Tanto a gaga como o bucho morreriam de fome. Portanto, é injusto falar em 'uma profissão como outra qualquer'. Ou estou enganado?".

O orador é aplaudido como um tenor no dó de peito.

O representante imaginário da Life faz a sua pergunta: — "É verdade que o senhor brigou com os 2 mil anos da Igreja?". D. Hélder não ouviu direito. O outro repete: — "É verdade que o senhor brigou com o passado da Igreja?".

A resposta foi de uma rara felicidade: — "Meu amigo, quem tem passado é a adúltera recuperada".

Neste momento, uma admiradora de J. G. de Araújo Jorge aparece com um livro: — "O senhor quer escrever isso no meu álbum?".

D. Hélder arranca da batina uma caneta e põe lá: — "Quem tem passado é a adúltera recuperada". Na sua vaidade autoral, o arcebispo pergunta: — "Gostou?". E a moça: — "Lindinho!".

Agora era a vez da estagiária do Jornal do Brasil. Eis a pergunta: — "O que é que o senhor acha do amor?".

D. Hélder fez um risonho escândalo. Diz: — "Oh, oh!". E responde com outra pergunta: — "Que idade você tem?".

Resposta: — "Dezenove".

D. Hélder ralhou, alegremente: — "E como é que você, aos dezenove anos, fala em amor? O que é amor? Isso não existe, nunca existiu. O amor é a doença do sexo". Estaca ao som da própria frase. Diz: — "Acho que fui feliz". E repete: — "O amor é a doença do sexo". Estimulado pela frase, foi adiante: — "O amor tem que ser exterminado. Nunca a morbidez é do sexo, sempre do amor. O sexo é de uma pureza, de uma inocência, de uma saúde totais. Vejam a lição dos vira-latas e dos gatos vadios. Olhem a praça da República. Não se conhece um Werther entre os gatos do Campo de Santana. Jamais um vira-lata matou, ou se matou, ou deu manchete na Luta ou no Dia. Precisamos matar o amor!".

Era o fim. A aragem fina desfez a imprensa imaginária.

O Justino Martins tornou-se diáfano, o Cláudio Mello e Souza, incorpóreo, a estagiária, alada. Paletós, camisas, gravatas e sapatos, tudo se volatilizou.

E, por muito tempo, o terreno baldio ficou ressoante da sábia frase: — "O amor é a doença do sexo".

[15/6/1968]
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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

O homem, o bonde e a mulher

Cada um dá o golpe que quer. Uns ainda se escudam no manjadíssimo serão no escritório; outros preferem telefonar dizendo que chegou um amigo do interior; há os que só arranjam uma desculpa na hora de chegar.

Desta ou daquela maneira, maridos retardatários têm seus respectivos estilos, de acordo com as respectivas esposas.

As esposas, por sua vez, acreditam ou não; fingem acreditar ou não, e — por conta própria — têm suas maneiras de verificar se o que o marido contou ao chegar era verdade. Nunca é, mas... não custa nada admitir a hipótese, pois hipótese existe é para ser admitida.

Stanislaw tem um amigo que mora numa praça, cuja tem muitas árvores onde dormem muitos pardais. Para chegar em casa tem que passar pela praça e, quando chega depois que os passarinhos acordaram, a mulher controla a hora em que ele entrou pelo sujo que os passarinhos fizeram na roupa dele. Por isso o nosso amigo tem horror a passarinho.

Não sabemos se vocês leram a notícia de um bonde que perdeu a direção e entrou numa casa, na madrugada de 22 passada.

Nessa mesma noite, cavalheiro de nossas relações — cujo nome é impossível escrever aqui, pois não somos cronista mundano que nasceu para incrementar o desquite — saiu pela aí, desgarrado de casa, local para onde telefonou por volta de 7 da noitinha, avisando que ia à convenção do PSD (ele na hora esqueceu que votara no Jânio).

Calçado o regresso, pelo menos no seu entender, tomou umas e outras e telefonou mais uma vez, agora para uma desajustada em disponibilidade amorosa, que, quando se encontra em estado de "jogada fora", sai com ele.

Meteram um boteco legal, espalharam muita brasa e, quando os leiteiros já tinham recolhido as carrocinhas, ele chegou em casa. Eram 4 e lá vai perdigoto.

Tirou a roupa e deitou, como bom pessedista, fingindo que vinha da convenção, embora o bafo.

A mulher, no dia seguinte, não lhe dirigiu a palavra e ele, para confraternizar, puxou conversa de todo jeito, acabando por pegar o jornal e começar a ler. Ao passar os olhos na coluna de polícia, deu com o cabeçalho:

"De madrugada — bonde entra em casa."

Virou-se para a mulher, para tentar mais uma vez a pacificação, e disse:

— Ouve só, querida, que notícia curiosa. — E leu: — "De madrugada — bonde entra em casa."

A mulher olhou-o com desprezo e comentou apenas:

— Aposto como entrou mais cedo do que você

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Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto).
Fonte: O MELHOR DE STANISLAW - Crônicas Escolhidas - Seleção e organização de Valdemar Cavalcanti - Ilustrações de JAGUAR - 2.a edição - Rio - 1979 - Livraria José Olympio Editora.

Educação sexual

O meu secretário chama-se "Pão Doce" (tal apelido, não sei por que, me parece do mais puro Dostoievski. Quero crer que "Pão Doce" é um ser tão prodigioso como Marmeladov, o pai de Sônia).

Mas, como ia dizendo: — chego à redação e o "Pão Doce" vem, correndo, avisar: — "Tem um cara te procurando". E repetia, de olho rútilo: — "Um cara!". Estava excitado como se fosse a polícia.

Tiro o paletó e o ponho na cadeira. O "Pão Doce" indaga: — "Mando entrar?".

Puxo um cigarro: — "Manda".

Com pouco mais, volta o "Pão Doce" acompanhado. Era um senhor, grisalho, bem posto, um ar de major Anthony Eden, quando este era major e tinha 37 anos. Digo: — "Tenha a bondade". Sentou-se: — "Com licença". O "Pão Doce" retira-se.

E, então, começa uma conversa que me deu, do princípio ao fim, uma sensação de um vil pesadelo. Só agora me lembro que o desconhecido não me disse o nome. Vejam vocês: — conversamos duas horas e não sei como se chama (e, como permanece anônimo, o nosso diálogo parece cada vez mais irreal).

Eis como se apresentou: — "Eu sou um pai".

Explicou em seguida: — "Vim de São Paulo, especialmente". (Estou fazendo o suspense que ele fez comigo). Pausa. Diga-se de passagem que o "diálogo" foi um monólogo. Só ele falava, e só eu ouvia.

Durante cerca de duas horas desfiou a sua história ou, melhor dizendo, a história de sua filha. É uma menina de oito anos, linda, linda, de olhos azuis. Digo "olhos azuis" e já não sei se ele falou de "olhos azuis". Matriculou a menina num colégio religioso, o melhor, mais caro de São Paulo. "Sou católico", informa; e ajuntou: — "Praticante". Quase o interrompi para dizer-lhe que, no Brasil de hoje, o verdadeiro católico é um ser em solidão total. O pai baixa a voz: — "Mas não sou católico pra frente".

No colégio referido, só existem meninas de luxo, de famílias também de luxo. O pai estava muito feliz, vendo a garota à sombra das freiras em flor. Aconselhava aos amigos: — "Põe lá a tua filha! Colégio padrão, colégio ideal". Até que, um dia, é convocado para uma reunião de pais e freiras.

Disse no telefone: — "Pois não, pois não! Irei, com muito prazer". E, na hora marcada, estava lá, com a elegância de um major Anthony Eden mais moço. Inclina-se diante de uma freirinha: — "Por obséquio, onde é a reunião dos pais?".

A outra sorria: — "Por aqui". Ele a seguiu.

E houve a reunião. O pai chegou, cumprimentou a madre, sorriu para os outros pais e sentou-se. A madre estava falando com uma mãe grã-fina. Dava explicações: — "A educação sexual, aqui, começa aos quatro anos de idade".

O pai imagina: — "Devo ter ouvido mal". Fez a pergunta: — "A senhora disse 'quatro anos'?". Resposta: — "Quatro anos".

Um outro pai indaga: — "E as crianças entendem?".

Todos, ali, eram pessoas esclarecidas, atualizadas, em dia com as novas verdades. Mas houve, ainda assim, uma dúvida geral.

Os presentes se entreolhavam. Havia, sim, uma perplexidade no ar. E o pai, sem nada dizer, imaginava um jardim de infância, onde, aos quatro anos, as garotinhas teriam suas idéias, seus pontos de vista, sobre Freud.

A diretora explica, deleitada: — "As meninas aprendem vendo figurinhas".

O coração do pai começou a bater mais forte.

Continuava a explicação: — "As meninas vêem as gravuras e aprendem tudo". O major Anthony Eden já não sabia o que pensar, nem o que dizer. Teve vontade de perguntar se não seriam aquelas as tais "gravuras obscenas" que a polícia não deixa vender. Mas nada disse.

E por que garotinhas de quatro anos teriam de ver as "gravuras obscenas" que a madre não achava obscenas? Veio o exlarecimento: — "É preciso acabar com o tabu do sexo!".

Disse isso e sentia-se a sua gloriosa satisfação. Afirmava, olhando em torno exultante: — "Sexo não pode ter mistério. A criança precisa saber que o sexo é como...". A diretora parou, um momento, procurando a imagem exata. Disse, afinal: — "Como beber um copo de água". O sujeito bebe água quando tem sede. Esse copo de água é o sexo. Uma grã-fina cochicha, deliciada: — "Muito interessante".

O pai já está sentindo uma dor do lado esquerdo, com reflexo pelo braço. E continua ouvindo. Então, a propósito não sei de que filme, alguém fala em "prostituição". A freira deu a resposta fulminante: — "Ser prostituta é uma profissão como outra qualquer".

Houve uma concordância quase unânime. Fora umas duas ou três perplexidades, aqueles pais e aquelas mães balançavam a cabeça: — "Realmente; realmente".

O pai balbuciou: — "Profissão como outra qualquer? A senhora tem certeza?". A outra é superiormente irônica: — "Não vamos discutir o óbvio".

E, então, o pai ergueu-se. Estava numa indignação homicida. Mas como um bem-educado, preservava a polidez até no ódio.

Despediu-se de todos, desculpou-se: — "Preciso ir. Estão-me esperando". Saiu, desatinado.

E, agora, diante de mim, dizia: — "Um colégio de religiosas. Entende? De religiosas. E ensina que a prostituta é uma profissional como um ourives, ou um protético, ou um bombeiro hidráulico, ou um estofador. A caftina também não tem nenhum problema. É outra profissional do sexo. Deve descontar para o Instituto".

O outro horror do pobre homem eram as "gravuras obscenas".

Dizia-me: — "O senhor me entende? Um jardim-de-infância de meninas de quatro anos é quase um berçário. O senhor já imaginou freiras mostrando, num berçário, fotografias ignóbeis? Se um jornaleiro vendesse, para velhos bandalhos, faunos senis, tais gravuras, seria preso, apanharia na polícia, seria processado, o diabo. E por que um colégio de luxo, e religioso, pode fazer o que é proibido a um pobre jornaleiro?".

Eu queria falar e não tinha o que dizer. Bati-lhe nas costas: — "É a Igreja pra frente". E repeti: — "É a Igreja pra frente".

O outro concordou, numa amargura hedionda.

Sentiu-se um católico de uma outra Igreja, talvez de um outro Cristo. Estendeu-me a mão, envergonhado do próprio horror.

Suspira: — "Pelo menos, desabafei". E partiu, sem deixar o nome.

É tão anônimo como alguém que jamais tivesse existido.

[14/6/1968]

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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

Os conquistadores do mundo

O Grêmio, Campeão do Mundo de 1983 - Formou com Paulo Roberto, Mazarópi, Baidek, China, Casemiro e De León; mais o massagista Banha; Renato, Osvaldo, Tarciso, Paulo César e Mário Sérgio.

O tricampeonato brasileiro do Internacional ainda estava entalado na garganta dos gremistas quando o time perdeu para o Flamengo, deixando escapar o título nacional de 1982. Mas o Grêmio fez dessa derrota o início da campanha mais vitoriosa que um time gaúcho realizou até hoje.

Começou com a conquista heróica da Libertadores da América vencendo o Penãrol por 2 a 1 em Porto Alegre, depois de arrancar um empate em um gol na casa do adversário. O time contava então com quatro ótimos jogadores saídos das divisões inferiores do próprio clube: Paulo Roberto, China, Renato Gaúcho e Baidek.

Mas para trazer o Mundial Interclubes era preciso jogadores mais experientes. Para isso chegaram Mário Sérgio e Paulo César Caju. Entretanto, quem brilhou como nunca naquela decisão contra o Hamburgo foi o ponta-direita Renato. No primeiro gol, driblou o zagueiro uma, duas, três vezes antes de mandar a bola entre a trave e o goleiro. O time alemão chegou ao empate, mas, na prorrogação, ali estava ele de novo. De pé esquerdo. Renato fuzilou o gol adversário e garantiu o maior título que o Grêmio já conquistou.

Recebido em festa ao voltar de Tóquio, o time já encontrou afixada sobre a marquise do Estádio Olímpico a placa: "Grêmio campeão do mundo: nada pode ser maior" – provocação nada sutil aos colorados que não cansavam de lembrar a vantagem que levavam em títulos nacionais.

Na decisão mundial, o time entrou em campo com Mazarópi: Paulo Roberto, Baidek. De León e Paulo César; China, Osvaldo e Paulo César Lima; Renato, Tarciso e Mário Sérgio.

"Publicação dedicada a César Ferle, Redivo e toda cambada gremista, tequileros cruéis armados com tequila, limão e sal, daquela esbórnia da rua Chile em 2009. Saudade..."

Fonte: Wikipedia; Revista Placar.

Do Maracanã para o mundo

Flamengo, campeão mundial de 1981
Flamengo (1978 - 1983)

Em cada posição, um craque. Esta foi a receita que levou o Flamengo a se tornar o maior time que o Brasil viu jogar na virada dos anos 70. O Brasil e o mundo.

Foram quatro Campeonatos Cariocas (1978, 1979, o Especial de 1979 e 1981), três Brasileiros (1980, 82 e 83), uma Libertadores da América (1981) e um Mundial Interclubes (1981). A construção do time começou pelas mãos do técnico Cláudio Coutinho.

O Mengo contava com Zico, o maior craque hrasileiro de então, o goleiraço Raul e o zagueiro Rondinelli. Nos anos seguintes surgiram Júnior, Leandro, Mozer, Adílio, das divisões inferiores. Mas o clube não descuidou das contratações. A mais frutífera foi a do centroavante Nunes. o artilheiro das decisões.

Das inúmeras batalhas vencidas pelos rubro-negros, duas marcaram: sobre o violento Cobreloa, do Chile, na decisão da Libertadores (2 a O), e sobre o Liverpool (Inglaterra), 3 a O na decisão do Mundial Interclubes.

Raul Plasmann, Leandro, Marinho, Mozer, Júnior, Andrade, Tita, Adílio, Nunes, Zico e Lico.

Tri da alegria

O esquadrão que deu o primeiro tricampeonato ao Flamengo (1942-1944) reunia o que de melhor o futebol brasileiro havia produzido até então. Na zaga, a técnica de Domingos Da Guia; no meio-campo imperava o jogador mais completo antes do surgimento de Pelé, Zizinho; e no ataque havia Leônidas da Silva. Durante os três anos de campanha, Leônidas e Domingos dariam lugar a Silvio Pirillo e Quirino. Mas nada que pudesse atrapalhar o tricampeonato. Confira o timaço: Jurandir; Domingos Da Guia (Quirino) e Nilton; Biguá, Bria e Jaime; Valido. Zizinho, Leônidas (Pirillo), Perácio e Vevé.

Fonte: Revista Placar.

O homem que virou ele


Temos um amigo cigarra... Até aí tudo normal, como dizem os anormais. Mas é que esse amigo cigarra, no seu próprio entender, prevaricou. E prevaricou no violento. Imaginem vocês que, bastou que a "outra" (vejam vocês que monstro de cigarra, chama a esposa de "a outra")... bastou que "a outra" subisse para Petrópolis para ele alugar quarto num hotel muito bonzinho que tem portaria compreensiva.

Vocês estão seguindo o nosso raciocínio? Pois vamos em frente: de posse da chave do novo lar sumiu da residência oficial e foi à vida, se organizando em outras corriolas, muito sobre o animado, esquecido que mulher esposa é mulher bem informada, não somente pelo muito que investiga (com honrosas exceções), como também pelo muito de informativas que são as pessoas amigas, cujas gostam é de ver fogo na giranda do doutor.

Ainda estão nos acompanhando? Muito bem. Sigamos: a mulher soube, talvez antes que ele, do caso com a mariposa do luxo e do prazer — como diria o poeta... Sabem como é, marido é como boi solto, que se lambe todo.

Com quarto em hotel condescendente, com a mulher em Petrópolis, choveu moçoila. . .

Uma noite no "Hi-Fi", outra no "Drink", uma ida à Barra da Tijuca no carro de outro cigarra, para a clássica intoxicação com camarão, e lá se foi ele a simpatizar mais com esta do que com aquela até que... pimba — ficou de cacho.

Como, minha senhora? O que vem a ser "ficar de cacho"? É ficar sob o signo da amigação. A senhora desculpe, mas a forma grosseira de expressão foi para esclarecer melhor.

Um homem de cacho com mulher em Petrópolis não vai em casa nem para trocar de roupa. Dá uma única passada no lar, apanha um bolo de camisas, outro tanto de meias, pega o terno claro para quando não chover e o azul-marinho para quando chover e esquece de mudar a água do canário.

Tudo num táxi, parte feroz para o hotel mais camarada pouquinha coisa. Vanja vai, vanja vem, esquece até de subir para Petrópolis no fim-de-semana. Isto é imperdoável mesmo no pior dos cigarras e, no entanto, aconteceu com esse nosso amigo.

Resultado: passou o carnaval, veio a época do colégio das crianças e "a outra" se despencou serra abaixo, sabendo de tudo, inclusive com uma capa da revista Mundo Ilustrado, onde ele aparece de braços abertos para a objetiva, fantasiado de baiana rica.

Agora ele se despediu da mariposa do luxo e do prazer (jurou-nos que era um encanto de moça e não aceitou nem as duas notas de mil que ofereceu para calçar a saudade), pagou o hotel de porteirinho cego e retornou ao lar.

— Você não imagina o vexame. Lá ninguém fala comigo. O canário morreu de sede, ou de fome... sei lá. O cachorro, aquele desgraçado, que eu curei de bronquite, está me esnobando. Quando eu passo ele não levanta nem o focinho. Limita-se a abrir um olho... um olho de reprovação que me dá calafrios. Minha filha está muda.

— E sua mulher? — indagamos.

— Essa me chama de ele.

— Chama de quê?

— De ele. Se o almoço está na mesa, ela diz pra empregada: "avise a ele". Se o telefone toca, é a própria empregada que atende e diz pra minha mulher: "é para ele". Virei "ele" em minha própria casa.

Coitado do nosso amigo. Badalou muito. Agora agüente. Nisto de conseqüências, estamos com Tia Zulmira, quando disse: "Passarinho que come pedra, sabe o que advém".
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Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto).
Fonte: O MELHOR DE STANISLAW - Crônicas Escolhidas - Seleção e organização de Valdemar Cavalcanti - Ilustrações de JAGUAR - 2.a edição - Rio - 1979 - Livraria José Olympio Editora.

História do passarinho


O que vocês passarão a ler é um lindo conto escrito por Tia Zulmira, nossa veneranda parenta e conselheira. Trata-se de obra para a literatura infantil, à qual a sábia e experiente senhora vem se dedicando agora, após o convite para participar de um concurso de histórias infantis promovido por um programa de televisão.

Cremos que não é necessário acrescentar que a boa senhora tirou o primeiro lugar. Mas, passemos ao conto:

"Era uma vez uma mocinha muito bonita, que morava num lugar chamado Copacabana. Era uma mocinha muito prendada e com muito jeito para as coisas. Estudiosa e obediente, freqüentava sempre o programa de César de Alencar, ia ao Bobs e adorava cuba-libre. Lia muito e gostava, principalmente, da Revista do Rádio e da Luta Democrática.

Todos elogiavam a beleza da mocinha. Ela tinha cara bonita, olhos bonitos, pele bonita, corpo bonito, pernas bonitas, figura bonita. Era toda bonita. Apesar disso, não era feliz, a mocinha. Ela sonhava com uma coisa, desde pequena — queria entrar para o teatro. Sua mãe sempre dizia que não valia a pena, que ela podia ser feliz de outra maneira, mas não adiantava. O sonho da mocinha bonita era entrar para o teatro. Só pensava nisso e colecionava fotografias de Virgínia Lane, Sofia Loren, Nelia Paula e Marilyn Monroe.

Um dia, a mocinha estava muito triste, porque não conseguia ver realizado o seu ideal, quando um passarinho chegou perto dela e perguntou:

— Por que é que você está triste, mocinha? Você é tão bonita. Não devia ser triste.

— Eu estou triste porque quero entrar para o teatro e não consigo — respondeu a mocinha.

O passarinho riu muito e disse que, se fosse só por isso, não precisava ficar triste. Ele havia de dar um jeito. E de fato, no dia seguinte, passou voando pela janela do quarto da mocinha e deixou cair um bilhetinho que trazia no bico. Era um bilhetinho que dizia: Fila 4, Poltrona 16.

A mocinha foi e num instante conheceu o empresário do teatro que, ao vê-la, se entusiasmou com sua beleza. Foi logo contratada, e já nos primeiros ensaios, todos elogiavam seu desembaraço. Ela ensaiou muito, mas não contou nada pra mãe dela.

Somente na noite de estréia é que, antes de sair, chegou perto da mãe e contou tudo. A mãe ficou triste ao ver a filha partir para o estrelato, mas ela estava tão feliz que não a quis contrariar.

E foi bom porque a sua filha fez sucesso. Foi muito ovacionada; todo mundo aplaudiu. Ela voltou para casa contentíssima e, quando ia metendo a chave no portão, ouviu uma voz dizer:

— Meus parabéns. Você é um sucesso.

Aí ela olhou pro lado, espantada e viu o passarinho que a ajudara, pousado numa grade. Ela notou que o passarinho dissera aquilo em tom amargo e quis saber:
   
— Passarinho, você agora é que está triste. Por quê?

Foi aí que o passarinho explicou que não era passarinho não. Era um príncipe encantado, que uma fada má transformara em passarinho.

— Oh, coitadinho! — exclamou a mocinha que acabara de estrear com tanto sucesso. — O que é que eu posso fazer por você?

O passarinho então contou o resto do encantamento. A fada má fizera aquilo com ele só de maldade. Para ele voltar a ser príncipe outra vez, era preciso que uma mocinha bonita e feliz o levasse para sua casa e o colocasse debaixo do travesseiro. No dia seguinte o encanto findava.

— Mas eu sou uma mocinha feliz. E foi você mesmo, passarinho, que disse que eu era bonita. Você e todo mundo.

E dizendo isso, apanhou o passarinho e entrou em casa com ele. Ajeitou-o bem, debaixo do travesseiro e, cansada que estava das emoções do dia, adormeceu.

No outro dia de manhã aconteceu tal e qual o passarinho dissera. Quando a mocinha acordou havia um lindo rapaz deitado a seu lado. Era o príncipe.

Esta, pelo menos, foi a história que a mocinha contou pra mãe dela, quando a velha a encontrou de manhã, dormindo com um fuzileiro naval.

Que, aliás, só não casou com a mocinha, porque já tinha um compromisso em Botafogo.
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Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto).
Fonte: O MELHOR DE STANISLAW - Crônicas Escolhidas - Seleção e organização de Valdemar Cavalcanti - Ilustrações de JAGUAR - 2.a edição - Rio - 1979 - Livraria José Olympio Editora.