quarta-feira, 14 de setembro de 2011

História de Assombração

Há muitos anos passados – contou-me um narrador de histórias de assombrações – num lugarejo da ilha de Santa Catarina, morava um pescador que possuía várias embarcações para o serviço da pesca, inclusive uma lancha baleeira.

Homem trabalhador e cuidadoso que era, tratava com todo carinho suas embarcações e equipamento, os quais guardava num rancho bem construído e fechado à chave.

Certa manhã de uma sexta-feira, quando o pescador, junto com seus camaradas abriu o rancho para retirar as embarcações, encontrou a lancha baleeira molhada e com muita areia espalhada sobre o fundo o que causou surpresa a toda tripulação, pois tinham deixado enxuta e limpa quando na véspera a recolheram para o rancho.

Comentado e analisado o fato, eles chegaram à conclusão de que a maré naquela noite tinha sido alta e não encontraram nenhuma pegada de pessoa, na praia, portanto, não havia razão para suspeitarem que alguém tivesse tirado a lancha do rancho, mesmo porque ele estava fechado e a chave se encontrava em poder do seu dono.

Daquele dia em diante, todas as manhãs de sexta-feira, quando o pescador abria o rancho para retirar suas embarcações para retirar suas embarcações para pesca, encontrava a lancha molhada e lodosa.

Como aquele ano e naquele lugar, as endiabradas e perigosas mulheres bruxas vinham desenvolvendo grandes atividades bruxólicas contra as inocentes criancinhas, chupando-lhes o sangue até levá-las à sepultura e zombando sarcasticamente, das fortes rezas e bem urdidas armadilhas que se lhes preparavam – toda a tripulação da lancha foi unânime em concordar com a desconfiança do velho pescador de que aquele serviço só podia ser obra das temíveis mulheres bruxas.

Homem intrépido, acostumado a enfrentar fortes tempestades, o frio, a fome, a sede, etc., em sua árdua profissão, todos os dias, não titubeou em enfrentar mais este estranho caso que o destino lhe apresentou, como um desafio à sua coragem indomável de velho pescador.

Sempre respeitou as coisas do outro mundo, nunca lhes tocou nem de leve com escárnio ou zombarias, e, também, nunca duvidou da sua existência e atividades neste mundo. Apesar de tudo, procurou traçar um plano para cientificar-se verdadeiramente, se de fato eram as terríveis mulheres bruxas, as autoras daqueles embustes que tanto lhe preocuparam.

Seu plano foi o seguinte: colocou uma taramela na porta da gaiuta da lancha, pela parte interior, e ao entardecer de uma sexta-feira meteu-se dentro dela, fechou a porta por dentro e ficou esperando o resultado.

Passado alguns minutos, ele ouviu vozes estranhas e sentiu que abriam o rancho e levavam a lancha para o mar.

Na porta da gaiuta, ele tinha feito um pequeno furo, de onde espiou e viu um quadro horrível e descomunal, nunca imaginado por ele (e pensou consigo mesmo: "nem por ninguém").

Viu dentro da sua lancha uma caterva de mulheres nuas, de fisionomias horríveis, corpo esquelético, mãos com unhas pontiagudas, enfim um quadro dantesco, sinistro, demoníaco.

A mulher bruxa que ocupou o lugar de patrão na lancha, apresentava o corpo coberto de escamas negras, as unhas das mãos eram como ponta de lança. O cabelo muito comprido caía pela popa da lancha a fora e estendia-se sobre o mar, deixando no seu rastro um fogo de ardentia de comprimento incalculável.

Dos olhos chamejavam dois feixes de luz, que clareavam a grande distância, e seus pés eram semelhantes a patas de mula.

Cada banco da lancha estava ocupado por uma bruxa que manejava um remo de voga.

Ao começar a viagem, a misteriosa bruxa que estava governando a lancha, solta gritos enfurecidos, esbravejou e disse para as outras: "Aqui nesta embarcação, está cheirando a sangue real".

A mulher bruxa que estava sentada no banco da proa da lancha, perto da gaiuta onde o pescador estava escondido era comadre dele.

Todas as vezes que a temível bruxa patrão da lancha esbravejava e dizia: "Está cheirando a sangue real nesta embarcação", a mulher bruxa que era comadre do pescador respondia: "Remem, suas éguas, cada remada avance uma légua, que o galo branco já cantou e o amarelo cacarejou".

Vencida a légua por segundo em cada remada que davam, chegaram no porto do lugar que haviam escolhido, em uma sinistra reunião para as suas atividades diabólicas. Em pouco tempo, aí embicaram a lancha na praia e desapareciam.

Logo que elas abandonaram a lancha, o pescador saiu do seu esconderijo, apanhou um punhado de areia, colheu um ramo de rosas e escondeu-se novamente.

Mais tarde, as endiabradas mulheres bruxas chegaram na praia, reocuparam os seus lugares na lancha e saíam mar a fora.

Durante toda viagem de ida e volta, a mulher bruxa, patrão, advertiu insistentemente, às suas colegas de que naquela embarcação havia presença de sangue real.

A bruxa comadre do pescador, que havia notado a presença do seu compadre dentro da gaiuta, desde que chegou no rancho, defendeu-o sempre com muita habilidade também já na volta: "Remem, suas éguas, cada remada vence uma légua, os galos brancos e os amarelos já cantaram e os pretos já cacarejaram".

Com estes argumentos, ela defendeu o compadre das unhas terríveis daquelas mulheres bruxas, mesmo porque não podiam perder tempo à procura do sangue do pescador, senão seriam surpreendidas em estado fadórico pelo canto do galo preto.

E assim continuaram a viagem até chegarem ao porto de partida.

Desembarcaram, abriram o rancho, recolheram a lancha e desapareceram.

O dono da lancha que estava dentro da gaiuta, logo que se viu livre delas, apanhou a areia e as rosas que recolhera no porto onde elas o levaram e retirou-se para a sua casa.

No dia seguinte, tomou a areia e as rosas mostrou a muita gente do lugar para ver si alguém descobria a sua terra de origem.

Ninguém conseguiu, nem mesmo, dar uma opinião aproximada.

Mas acontecia que a mulher bruxa, sua comadre, aparecia quase todos os dias em sua casa – não para visitar o afilhado, pois ela já o havia mandado para o outro mundo, chupando-lhe o sangue – mas sim, para passear com uma filha dele de quem era muito amiga.

Como nenhuma das pessoas a quem ele mostrou a prova de sua coragem, conseguiu identificar o lugar da viagem voltou para casa um pouco desanimado.

Ao chegar em casa encontrou sua comadre bruxa sentada na varanda conversando com pessoas de sua família.

Cumprimentou-a e mostrando a areia e as rosas, perguntou-lhe se era capaz de descobrir o lugar de origem.

Quando a comadre bruxa foi solicitada a responder a pergunta, ela olhou para a areia e as rosas e imediatamente, respondeu o seguinte.

– Compadre, a terra de origem deste punhado de areia e destas rosas é a Índia. Estiveste entre a vida e a morte. Dentro de tua embarcação estavam as mais respeitadas, misteriosas, prepotentes e malignas mulheres bruxas, do reino de satanás. Se não foste assassinado por elas, agradece-o a mim, tua compadre, que estava sentada no banco de proa da lancha, perto da gaiuta, onde estava escondido.

O velho pescador depois de ter ouvido a narrativa da comadre bruxa foi à cozinha, apanhou um rabo de tatu que estava no fumeiro, despiu-a, deu-lhe uma boa surra, salgou as feridas com sal e pimenta e obrigou-a a descobrir o nome de todas as outras suas colegas de aventuras fadóricas.

Florianópolis, 25 de fevereiro de 1957

(Cascaes, Franklin. "História de assombração". A Gazeta. 23 de março de 1957)


Franklin Joaquim Cascaes (São José, 16 de outubro de 1908 — Florianópolis, 15 de março de 1983), pesquisador da cultura açoriana, folclorista, ceramista, gravurista e escritor brasileiro. Dedicou sua vida ao estudo da cultura açoriana na Ilha de Santa Catarina e região, incluindo aspectos folclóricos, culturais, suas lendas e superstições. Usou uma linguagem fonética para retratar a fala do povo no cotidiano. Seu trabalho somente passou a ser divulgado em 1974, quando tinha 54 anos. Obras: Balanço bruxólico; Nossa Senhora, o linguado e o siri, A Bruxa metamorfoseou o sapato, Balé das mulheres bruxas, Mulheres bruxas atacando cavalos, O Boitatá, Mulheres dando nós em caudas e crinas de cavalos.

Fonte: http://contosassombrosos.blogspot.com

Comunicação telebruxólica


"Mulheres bruxas terrículas e selenitas comunicando-se da terra para a lua e vice-versa, sentadas sobre os famosos elementos representantes da superstição através de linhas telefônicas cósmicas, transcendentais, colocadas em postes aéreos sobre satélites, que também se beneficiam do serviço telebruxólico." (F. Cascaes, 1970)

Franklin Joaquim Cascaes (São José, 16 de outubro de 1908 — Florianópolis, 15 de março de 1983), pesquisador da cultura açoriana, folclorista, ceramista, gravurista e escritor brasileiro. Dedicou sua vida ao estudo da cultura açoriana na Ilha de Santa Catarina e região, incluindo aspectos folclóricos, culturais, suas lendas e superstições. Usou uma linguagem fonética para retratar a fala do povo no cotidiano. Seu trabalho somente passou a ser divulgado em 1974, quando tinha 54 anos. Obras: Balanço bruxólico; Nossa Senhora, o linguado e o siri, A Bruxa metamorfoseou o sapato, Balé das mulheres bruxas, Mulheres bruxas atacando cavalos, O Boitatá, Mulheres dando nós em caudas e crinas de cavalos.

Fonte: http://contosassombrosos.blogspot.com

Movido pelo ciúme

Aqui no jornal diz que Luís Caldas matou Rosa Maria dos Santos movido pelo ciúme; e dá antecedentes do crime. Luís foi passar o carnaval num sítio, lá no interior, casa de um amigo. Rosa Maria ficou aqui, nos quatro dias de festas carnavalescas. Diz que os dois eram noivos, mas deviam ser mais do que isso, pois Luís sentiu o ciúme a doer-lhe na carne.

Pobre Luís! Sua inexperiência amorosa levou-o ao mais doloroso dos sentimentos. "Cada um mata aquilo que adora" — dizia o nem sempre ultrapassado Oscar Wilde. E Luís foi nessa. Não soube explicar à amada que há homens cujo amor não suporta o impacto de um carnaval e sentiriam a angústia do ciúme mesmo que enfrentassem as lides carnavalescas de braço com a mulher que querem e que sentem sua. Não soube explicar e depois não soube livrar-se das provocações da amada, porque toda mulher é assim mesmo e é nas reações do homem que busca o alimento do seu amor.

Rosa Maria não tomou a ausência de Luís ou não a sentiu — melhor dizendo — em suas verdadeiras proporções: Luís sumiu por amor, por nutrir pela amada um misto de superconfiança nela e mesquinha insegurança em si mesmo. Vieram as Cinzas, voltaram a se encontrar e ela pôs-se a provocar.

Ó Senhor, é preciso todo um mundo de renúncias íntimas para suportar o que diz a amada, após o reencontro. Pobre Luís, não tinha ainda aprendido a grande lição! No reencontro a amada mostra-se alegre como um passarinho e já aí começa o ciúme a maltratar o homem. Ela deixará escapar frases soltas, pequenas provocações que o homem, para proteger o seu amor por ela, deve deixar que batam contra o escudo do estoicismo.

Ela dirá, por exemplo, "há muito tempo que o carnaval não esteve tão animado". Ao homem, nesta circunstância, resta balançar a cabeça, concordando, mas nunca perguntando: "Você achou, é?". De maneira nenhuma. Passe incólume, amigo, se ama de fato quem o ama.

Ela virá com novas armas. Haverá um momento de pausa na conversa e ela vai cantarolar baixinho: "Tristeza... por favor vai embora!". Algumas, depois de cantarolar, ainda acrescentam: "Chi, esta música não me sai da cabeça". Agüente firme, irmão, e se ânimo sobrar, diga: "Esse samba é lindo, realmente".

Sei que o ciúme está fazendo de você o "palhaço das perdidas ilusões", mas até aí você vai indo bem. Chegará o momento em que ela, a troco de nada, vai dizer: "Lá onde você passou o carnaval tinha televisão?". Responda que não, mesmo que houvesse, pois ela arrematará: "No Baile do Monte Líbano eu fui focalizada diversas vezes". Finja que não vê o olhar que ela estará usando contra você e faça de si a estátua da renúncia, quando ela informar que a fantasia dela fez muito sucesso: "Era aberta de um lado e deixava a perna toda de fora. Recebi elogios totais".

Sei que é hora do bofetão, amigo, mas — por favor — não deixe que o fantasma do ciúme invada o seu castelo. Para que sua amada continue a ser a sua amada, respire fundo e esqueça, ela poderá insistir com mais umas duas ou três, no estilo "que beleza é ver o sol nascer no carnaval", mas está cada vez amando mais você. E então, quando ela telefonar com aquela mesma voz dengosa que tinha em janeiro, você estará de parabéns: venceu a batalha, irmão!

Mas lembre-se: vencer uma batalha não é vencer a guerra. Aguarde, que outros carnavais virão.
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Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto).

Fonte: FEBEAPÁ 1: primeiro festival de besteira que assola o país / Stanislaw Ponte Preta; prefácio e ilustração de Jaguar. — 12. ed. — Rio de Janeiro; Civilização Brasileira, 1996.

Bruxas metamorfoseadas em bois

O Policarpo Estevo possuía, para seu trabalho de lavoura, um carro de bois muito bem feito e duas juntas de bois, uma malhada e outra rosilha, domados para carro e engenhj. Na época de colonização da Ilha de Santa Catarina pelos açorianos - em 1748 - já um pouco avançado em anos, o carro de bois era o veículo que servia para o transporte de casamentos, batizados, passeios, mudanças, enterros e também para transporte de mandioca, cana-de-açúcar e lenha para os engenhos de fabricar farinha de mandioca, açúcar e também para os alambiques.
Numa manhã de sol ilhéu muito claro, bateram palma no terreiro da casa do Estevo, que ficava na Ponta das Pedras, atualmente Morro das Pedras, parte sul da Ilha de Santa Catarina.

Estevo atendeu prontamente. Era o Zé Jão Santa Cruz, morador da vargem do Queitaninho, um famoso médico curandeiro, natural de antanho, da Ilha de Santa Catarina, e que pensava em mudar-se para a Ponta das Pedras.

O Zé Jão nasceu numa Sexta-Feira Santa às 18:00 horas do dia, sob as vistas vigilantes da parteira aparadeira, a Sinhá Larica, da Praia Mole.

A madame História popular previne que, quando uma criança nasce na Sexta-Feira Santa, deve-se apanhar um grilo verde, colocá-lo dentro da mão esquerda dela e apertá-la até o bichinho morrer. Este cuidado, a parteira Larica cumpriu, e o Zé Jão tornou-se o maior médico curandeiro milagreiro da Vila do Desterro.

Certa feita, ele havia tomado parte numa conversa ao pé do fogo de trempe, onde, entre outras coisas de assombração, falaram que, na Ponta das Pedras, no meio daquele aglomerado de pedras miúdas que fica entre a Praia das Areias e a Praia do Mandu - uma delas se destaca em altura e é conhecida como Pedra da Feiticeira -, bandos de mulheres bruxas metamorfoseadas em ardentes fachos de fogo dançantes se divertiam a ainda se divertem a valer, após terminarem as estrepolias que praticavam nas comunidades nas sextas-feiras às desoras.

Como grande batalhador que era contra o reino da bruxaria e suas filiadas, o Zé Jão não podia, de forma alguma, deixar de oferecer combate sem quartel àquelas mulas-sem-cabeça, petulantes e descaradas, que vinham judiando dos adultos e das inocentes criancinhas indefesas da Ponta das Pedras, pois o que ouvira da boca dos comentaristas era simplesmente aterrorizador. Retirou-se, pensou calmamente no caso, entrou em êxtase captador de ultramundos e voltou ao ambiente onde as pessoas estavam reunidas comentando os acontecimentos e afirmou para todos, com voz cortante e ameaçadora: "Combaterei uma por uma, sem trégua nem légua!" E pensou: "Pra que eu pratique tal ato piedoso em defesa das pessoas deste lugá, perciso ter certeza da verdade verdadeira dos fatos que osvi através dos curados dos mos osvidos".

Na casa do Policarpo, entre as conversas importantes que o Zé Jão teve com ele, a que mais importância lhe atingiu foi a conversa ao pé da trempe, quando ele ouviu falar com relação às atividades bruxólicas ali praticadas por mulheres de poderes diabólicos muito chegadas ao reino de Lúcifer.

O Policarpo afirmou-lhe, com precisão incisiva, que a conversa que ele ouvira lá no Retiro da Lagoa da Conceição era eivada só de verdades verdadeiras das estórias ilhoas, como nas Ilhas dos Açores, aqui também conhecidas.

Depois de um gole de café tomado na porta, justamente onde ele estava sentado in riba do portal da mesma, pois não quis entrar porque estava fazendo muito calor, ocorreu-lhe um pensamento de alugar uma casa ali na Ponta das Pedras e mudar-se com a família. O Policarpo prontamente cedeu à vontade dele e falou-lhe que tinha uma casa de moradia junto a um engenho de farinha, bem ao lado da saída do caminho velho, na Lagoa do Peri.

Firmaram o negócio, e o Zé Jão deixou-o apalavrado com sete fios de sua barba como reféns documentários e partiu de volta para a sua casa lá na Vargem do Queitaninho, no norte da ilha. Naqueles tempos memoráveis do início de nossa colonização açoriana, os homens arrancavam um dos fios de sua barba e o davam como documento em troca de casas, gêneros, animais etc.

Quando chegou em casa, após um descanso entre goles de café e indagação da família das coisas cá do Sul da Ilha, o Zé Jão adiantou-se:

- Penso em mudar-me para lá, pois já dexê uma casa apalavrada e assinada com fios de minha barba.

A família concordou e trataram de preparar o espírito para levarem a cabo a mudança. Passados alguns dias depois de seu regresso lá daquelas bandas do sul da ilha, ele recebeu a visita de um cavalheiro bem apessoado com uma montaria muito bem organizada, que o procurou para curar uma filha de 16 anos, que estava sendo vítima passiva de um encosto espiritual meio confuso. O Zé convidou o homem para entrar no seu consultório curandeirista, apanhou um banco de madeira, ofereceu para seu cliente sentar-se e colocou-se de prontidão para ouvi-lo.

- Antão, mo sinhôri - indagou o Zé Jão - o que é que faz aqui por esta banda da Vargem do Queitaninho?

Respondeu o seu cliente:

- Me dissero que o sinhô é um dos maió médico curandeirista de antanho que mora aqui in riba das terra da ilha de Santa Catarina. Como eu tenho necessidade de pricurá uma pessoa qui nem o sinhô, que é munto intindido das coisa dos otros mundo, eu pricurê viajá inté aqui pra mo de consurtá vossa mecê. So Zé Jão, eu tenho uma fiia de dezasseis ano que tá sendo aperseguida por um máli munto istranho. Toda noite ela iscuta a voz dum isprito esfomeado que chama ela pro mato. Só ela osve a voz e sabe o que é que ele qué, mági não pode contá pra ninguém sinão ele mata ela. Sinhô! Duns tempo pra cá, ela anda meio desquarada, das perna e barriga inchada e munto pensativa. Eu tive falando pra minha muié que os isprito e encosto de agora tão ficando munto otoritaro, pois inté proíbe a gente, que é pai, de acompanhá as fiias que eles tão usando como veículos povoadô.

O Zé Jão escutou as lamúrias povoadoras do cliente com muito carinho e apanhou um cigarro papa-terra, que estava guardado atrás da orelha, acendeu, colocou na boca para receber a atuação da vontade inspiradora do vago simpático, apanhou um punhal de prata que estava junto da sua ferramenta cirúrgica anti-bruxólica, benzeu o cliente no peito e nas costas, bocejou demais devido à força do malvado encanto de olhado que ele carregava e diagnosticou com exatidão exata:

- Mo sinhôri, o esprito que chama sua fiia no mato é pai de seu neto, que vai chegá na sua casa por estes dias. Ele está viajando há nove meis e uns dôs o treis dia e, a qualqué hora, ele bate na porta de seu vovô. Trate de arranjá um padre pra mó de casá a sua fiia, pra que o soneto não encontre o pai chamado morando no mato ainda, desde o dia em que ele ganhô viage fetal pra adespôs engajá neste mundo estrambólico.

O homem achou o Zé Jão um grande adivinho, embora meio envergonhado pela clareza dos fatos expostos, mas despediu-se muito agradecido. Como o tal homem morasse na Ponta das Pedras, Zé Jão aproveitou a oportunidade para pedir-lhe que ele transmitisse um recado ao Policarpo pra mó de vir na Vargem do Queitaninho buscar-lhe a mudança para a Ponta das Pedras. Um detalhe, porém: ele esqueceu-se de pedir ao homem avisar ao Policarpo que não fizesse a viagem durante a noite, para evitar aborrecimentos bruxólicos.

O Policarpo recebeu o recado de Zé Jão com muito carinho, chamou o Cipriano da Muca, jungiram os bois à canga do carro e, às sete horas da noite, partiram rumo à Vargem do Queitaninho. O Policarpo pôs-se de chamador na frente dos bois, calçado de tamancas e com uma aquilhada muito comprida sobre o ombro, enquanto que o Cipriano, também de aguilhada em punho, pôs-se de gajeiro atrás do carro. Entraram pelo caminho de Mato Dentro, Lagoa do Jacaré, viajando sem novidades; porém, logo que começaram a descer o morro do Badejo, avistaram uma porção de chamas de fogo boiando nos ares que se deslocavam na direção deles. De repente, aquele mundo de fogo se jogou dentro do carro de bois. Num repente, o chamador e o gajeiro acharam-se metamorfoseados em bois, orelhas (1) furadas, uma corda amarrada em cada furo e jungidos à canga. Os bois dentro do mesmo, guiando-os como se fossem criaturas de argila humana crua com cérebro e tudo. Isto significou os fabulosos poderes do mal, donde o Policarpo e o Cipriano, o chamador e o gajeiro, metamorfoseados em bois e os bois metamorfoseados em Policarpo e Cipiano, através do poder quase ilimitado de mulheres bruxas, que enfeixam, na sina de seus poderes diabólicos, as leis rubras do Reino de Satanás.

Depois delas haverem judiado muito com eles por caminhos tortuosos, buracos, subidas de morros, abandonaram-nos lá na única praia da Lagoa da Conceição, hoje sepultada com barro, asfalto e lajotas, com quatorze sepulturas com cruzes de coqueiros. Ali o Policarpo e o Cipriano perderam o encanto acidental e os bois também, sentados na areia da praia da ex-praia única da Lagoa da Conceição. Entreolharam-se, benzeram-se, rezaram o Creio em Deus; embora muito abatidos física e moralmente, tomaram depois o caminho do Canto da Lagoa e mandaram-se para a casa.

Ao chegaram em casa, bateram na porta e avisaram para a pessoa que os atendeu que não acendesse luzes e que aguardasse um pouquinho a razão, pois logo em seguida a comentariam.

É crença popular que, quando se é atingido por assombrações e consegue-se fugir dos seus poderes mortíferos, ao se procurar abrigo, este não deve receber a vítima com luzes acesas.

Durante a noite, eles tiveram pesadelos horríveis e, até certo ponto, difíceis de criaturas humanas os analisar. Enquanto eles sofriam essas horríveis torturas em suas casas aqui na Ponta das Pedras, o Zé Jão, lá na Vargem do Queitaninho, também não foi dispensado. Durante a noite, o bando de megeras mulheres bruxas pintaram o Judas por riba da casa dele, das matas, com os animais que berravam, cães que latiam e uivavam, galos que cacarejavam, cavalos que relinchavam, sapos que coaxava, rasga-mortalhas que voavam e deixavam no ar rasgos de agoiros predizendo a presença da morte.

A casa do Zé Jão, nem a família dele, nem nada que lhe pertencia foram atingidos pela vingança bruxólica das megeras bruxas que, ele bem sabia e tivera conhecimento, estavam infestando a Ponta das Pedras. Dormiu descansado e, no dia seguinte, montou o cavalo e partiu para a casa do Policarpo. Ora, é lógico, curandeiro inato que era, espiritualmente ele tomou conhecimento, durante a noite, de tudo o que havia passado sobre sua casa e com os dois amigos, o Policarpo e o Cipriano.

Ele sabia, ora se sabia, e tinha plena certeza de que as megeras estavam preparando uma cilada para derrotá-lo. Isto porque sua bisavó, há muitos anos, lhe havia avisado, pois quando ela ainda era bruxa, tomou parte de uma reunião bruxólica, nos rochedos da Ponta das Garças, Praia da Joaquina, que foi convocada especialmente para tratar do seu prestígio curandeiro aqui no Desterro.

A velha havia sido uma autêntica bruxa, parte nos Açores e parte aqui na Ilha, pois ela mudou-se para cá com aproximadamente vinte anos de idade. Para sua felicidade, ela foi apanhada numa armadilha feita com um baú de folha de flandres e uma vela benta na Sexta-Feira Santa, ocasião em que perdeu a triste sina do fato.

Vamos ao caso.

O Zé Jão apareceu na casa do Policapro urrando que nem leão ferido. Cada uma das vítimas apresentou suas queixas contra os fatos acontecidos e juraram vingar-se das megeras.

O Zé Jão, ao anoitecer, apanhou um pouco de mostarda e colocou-as no bolso da calça; na boca colocou um dente de alho vestido com a casca e partiu, muito seguro, para junto das Pedra de Feiticiera da Ponta das Pedras.

Num repente, quando ele se aproximou da pedra e olhou-a de frente, notou que ela ficou coberta de chamas e luzes de várias cores e formas do mundo objetivo das coisas que fandangadeavam, cachimbavam, uivavam, latiam, lancinavam, gargalhavam, debochando da presença dele ali.

A princípio o Zé Jão se acovardou com o quadro sinistro e aterrorizador diante de seus olhos humanos, embora de um curandeiro de alta capacidade espiritual, protegido pelas virtudes milagrosas curandeiristas naturais ganhas de sua madrinha parteira aparadeira, através do sacrifício e morte de um inocente grilo verde. Antes de iniciar o combate para enfrentar corpo a corpo a luta contra o poder das chamas diabólicas do inferno que se haviam colocado em riba da Pedra da Feiticeira, ele pensou sete vezes por onde devia iniciar. Sim! Recuperando as forças físicas num pialo, meteu a mão no bolso da calça, apanhou as mostardas e atirou-as contra o fogaréu bruxólico, que, num abrir e fechar d´olhos, se extinguiu rapidamente. E o que aconteceu? O resultado foi o de um bando de mulheres nuas enfeitando as pedras pequenas onde ele se achava e pedindo-lhe clemência e proteção, à moda ilhoa. Entre o bando das ex-bruxas, estava uma, que havia sido namorada do Policarpo e depois noibv durante sete anos.

O Policarpo deu uma gola nela numa festa do Divino da Freguesia do Ribeirão. Ela já era bruxa quando foi namorada dele, porém ele não sabia e nem desconfiava. Devido à gola dada por ele, ela procurou vingar-se e justamente na ocasião em que ele mais o Cipriano dirigiam-se à Vargem do Queitaninho para apanharem a mudança do Zé Jão para a Ponta das Pedras, atualmente Morro das Pedras. Ela sabia, e isso ela comunicou para a sua chefe, que o Policarpo está interessadíssimo em trazer o Zé Jão cá pro sul da Ilha, com a finalidade exclusiva de dar-lhe combate.

Com o alcance dessa vitória, o Zé Jão firmou-se no conceito das comunidades ilhoas desterrenses com o título de maior médico curandeiro até então acontecido aqui nesta ilha (já denominada) de Iurumirim, Los Perdidos, dos Patos, de Nossa Senhora do Desterro, de Santa Catarina de Alexandria e dos muitos discutidos casos e incomparáveis ocasos raros.


(1) Segundo o depoimento de várias pessoas consultadas, a junção entre os bois de uma parelha se faz não pelas orelhas mas pela ponta das aspas, o que favorece a hipótese de um equívoco do narrador (O. Furlan)


  
Franklin Joaquim Cascaes (São José, 16 de outubro de 1908 — Florianópolis, 15 de março de 1983), pesquisador da cultura açoriana, folclorista, ceramista, gravurista e escritor brasileiro. Dedicou sua vida ao estudo da cultura açoriana na Ilha de Santa Catarina e região, incluindo aspectos folclóricos, culturais, suas lendas e superstições. Usou uma linguagem fonética para retratar a fala do povo no cotidiano. Seu trabalho somente passou a ser divulgado em 1974, quando tinha 54 anos. Obras: Balanço bruxólico; Nossa Senhora, o linguado e o siri, A Bruxa metamorfoseou o sapato, Balé das mulheres bruxas, Mulheres bruxas atacando cavalos, O Boitatá, Mulheres dando nós em caudas e crinas de cavalos.

Fonte: http://contosassombrosos.blogspot.com