terça-feira, 6 de setembro de 2011

Esposa bem tratada

O Guedes avisou:

— A Luci é dureza, percebeste?

Miranda virou-se:

— Dureza? E por que dureza?

O outro foi explicando: — “É séria por natureza e, além disso, o Braga é o melhor marido do mundo, caxias até debaixo d’água. Tu achas que ela vai trair um marido que nunca lhe fez nada, que a trata como uma rainha? Pensa bem”.
Impressionado, Miranda balbucia:

— Eu não sabia que o Braga era assim. E deve ser o único, porque todos os maridos que eu conheci, até agora, são uns bestalhões de fivela!

Então o Guedes, que conhecia o casal, que lhe freqüentava a casa, que almoçava e jantava lá de vez em quando, entrou a traçar o retrato daquele esposo extraordinário. Entre outras coisas que abalaram o Miranda, revelou o seguinte: — o Braga jamais traíra a mulher, jamais. Insistiu:

— Então achas que uma mulher tão bem tratada vai trair?

O outro, no seu despeito e na sua frustração, rosna: — “Quem sabe?”. Guedes pulou:

— Quem sabe, uma ova! E vou te dizer o seguinte: — queres saber o que é mulher séria? — Pausa e conclui: “Séria é a mulher bem tratada. Portanto desiste, rapaz, porque desse mato não sai cachorro, ou coelho, sei lá!”.

O APAIXONADO

Miranda era conhecido como o sujeito que tinha amores imortais, de quinze minutos. Mas a paixão pela esposa do Braga parecia um sentimento inédito na sua vida. Há três meses que gostava da Luci e só da Luci. Conhecera-a numa festa em casa de família. Podia ter convidado a pequena para dançar. Mas era de uma timidez agressiva em certas ocasiões. Apresentado à jovem senhora, mal pôde gaguejar um “muito prazer”, e foi só. Mas não lhe tirava os olhos de cima e não sossegou enquanto não se sentou perto de Luci. Ela conversava com outra senhora e o assunto era parto. Miranda ouviu a pequena dizer:

— Graças a Deus, nunca levei um ponto!

Referia-se aos próprios partos, que eram simples, fáceis, quase indolores. E Miranda, que não entendia nada de maternidade, achou que o fato de uma parturiente não levar ponto constituía um privilégio altíssimo. Saiu da festa febril de paixão. Luci era do “tipo gordinho” que, desde menino, o deslumbrava. Dia após dia, ele viveu em função desse amor. Abriu o coração com o seu amigo Guedes. Este o dissuadiu. Miranda considerou o raciocínio do amigo e levantou-se:

— Acho que você tem razão. O golpe é desistir.

De pé também, o Guedes bateu-lhe no ombro:

— Arranja outra. Mulher é que não falta. Escolhe uma que não seja bem tratada pelo marido.

O MILAGRE

Dois dias depois, estava o Miranda no escritório, batendo umas faturas, numa depressão medonha. Numa mesa perto, o Azevedo, que era um velho patusco, estava dizendo, com alegre ferocidade: — “Eu acredito em milagre. E digo mais: — só acredito em milagre”. Então, na sua tristeza, o Miranda pensou que, para ele, o milagre seria o êxito no seu amor por Luci. Pois bem: — neste justo momento, o boy o chama ao telefone. Levanta-se e atende. Ouve uma voz feminina, que diz:

— Sabe quem está falando?

Confessa:

— Não, não sei. Quem é?

Resposta:

— Luci

— Que Luci?

E a outra, provocante:

— A Luci em que você está pensando.

O trote pareceu-lhe evidente. Foi grosseiro no telefone:

— Sossega o periquito. E das duas uma: — ou diz quem é ou desligo.

Do outro lado da linha, a pequena ria. E só uns cinco minutos depois é que Miranda convenceu-se em definitivo: era Luci, sim, a fabulosa Luci, que o procurava e ligava para ele. No maior deslumbramento de sua vida, encheu-se de dedos. Ela ria, ainda:

— Você pensa que eu não percebo que você não tira os olhos de cima de mim? Podia ter me telefonado, ora essa, e por que não?

O inepto pergunta: — “E seu marido?”. Respondeu: — “Meu marido não está sempre em casa”. No fim de meia hora de conversa, Miranda, num arranco de coragem suicida, propõe-lhe um encontro, que a menina aceita com uma deliciosa naturalidade. Ela fez, porém, uma ressalva:

— Tem que ser num interior.

Admirou-se: — “Como num interior?”. Com certa impaciência, a outra põe os pingos nos is: — “Você não tem um apartamento?”. O pobre-diabo quase agonizou no telefone. Desvairado, promete: — “Arranja-se. É o de menos”. Larga o telefone com as pernas bambas, a vista turva. Senta-se, aperta a cabeça entre as mãos e procura pôr ordem nas idéias.

Pensa: — “Deve ser sonho ou, então, é o milagre”. Procura o Guedes, conta-lhe tudo:

— Entrou de sola, compreendeste? E fiquei de telefonar, de manhã, dando o endereço do apartamento.

O Guedes, atônito, via ruir por terra a sua teoria da “esposa bem tratada”.

Miranda, aflito, cutucava-o:

— Temos que arranjar um apartamento, digno da “Rainha de Sabá”.

ABERRAÇÃO

Miranda conseguiu o que queria com o Lobato. Este, garoto milionário e irresponsável, montara um apartamento que só faltava falar. Tinha lá de tudo, inclusive uma geladeira suntuária, monumental. O Lobato entrega-lhe a chave e aconselha: — “Mostra-lhe a geladeira!”. E justificava: “Mulher se impressiona muito com geladeiras!”. Miranda embolsa a chave e bufa: — “Tu és uma mãe”.

No dia seguinte pela manhã, diz à pequena, pelo telefone, o endereço do apartamento em Copacabana. Combinaram tudo, de pedra e cal, para as quatro horas. Miranda continuava inseguro. Dizia até para o Guedes: — “Será que eu estou sonhando?”. O Guedes, interessado no episódio, foi levá-lo até a esquina do edifício. Miranda chegou antes, uns quarenta minutos na frente. Às quatro em ponto, Luci apareceu. Diante dela, ele balbucia, numa embriaguez total:

— Minha gordinha!

O FIM

Duas horas depois, Luci está diante do espelho, pondo batom. Tem um lírico lamento: — “Você me arranhou com a sua barba!”. E, então, ele vem por trás e, na sua felicidade, quer saber: — “Tu gostas de mim?”. Luci vira-se: — “Eu não gosto de ti”. Ele não entende. Insiste: — “Nem um pouquinho?”. Ela responde, doce, mas inapelável: — “Nada”. E ele atônito: — “Sério?”. Encara-o: — “Seríssimo!”. Sentiu que Luci não mentia e, no seu despeito, segura aquela mulher possuída:

— Se não gostas de mim, por que traíste teu marido?

Luci ergue-se. Apanha a bolsa, enquanto o amante espera. Diz-lhe:

— Traí meu marido porque, todas as noites, ele tira a dentadura e põe num copo.

Miranda não fez um gesto quando a pequena passou por ele, sem uma palavra, um olhar, um sorriso. Deixou-a ir e, só no quarto, sentou-se na extremidade da cama e pôs-se a chorar.
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A coroa de orquídeas e outros contos de A vida como ela é... / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

Diabólica

Na noite do pedido oficial, Dagmar, de braço com o noivo, foi até a janela, que se abria para o jardim. Então, com uma tristeza involuntária, uma espécie de presságio, suspirou. E foi meio vaga:

— Caso sério! Caso sério!

E Geraldo, baixo e doce:

— Por quê?

Dagmar vacila. Finalmente, tomando coragem, indica com o olhar:

— Estás vendo minha irmã?

— Estou.

Durante alguns momentos, olharam, em silêncio, a pequena Alicinha, de treze anos, que, na ocasião, apanhava uma flor no jarro, para dar não sei a quem. Dagmar pergunta: “Bonita, não é?”. Geraldo concorda: “Linda!”. Então, pousando a mão no braço do noivo, a pequena continua:

— Por enquanto, Alicinha é criança. Mas daqui a um ano, dois, vai ser uma mulher e tanto.

— Um espetáculo!

Sorriu, triste:

— Um espetáculo, sim! — Pausa e, súbito, tem uma sinceridade heróica: — Há de ser mais bonita do que eu.

Geraldo interrompeu: “Protesto!”

Foi quase grosseira:

— Não me põe máscara, não! Eu tenho espelho, ouviu? Agora, que sou tua noiva, quero te dizer o seguinte.

— Fala.

E ela:

— Você é homem e eu sei que esse negócio de homem fiel é bobagem. Mas toma nota: se você tiver que me trair, que não seja nem com vizinha, nem com amiga, nem com parente. Você percebeu?

Surpreso e divertido, exclama:

— Você é de morte, hein?

AS IRMÃS

Havia entre as duas irmãs uma diferença de quatro anos; Dagmar tinha dezessete, Alicinha treze. Até então, Geraldo via a cunhada como uma menina irremediável. No fundo, talvez imaginasse que ela seria para sempre assim, criança, criança. A observação da noiva o apanhou desprevenido. Pouco depois, olhava para Alicinha com uma nova e dissimulada curiosidade. Sentiu que a mulher, ainda contida na menina, começava a desabrochar. Esta constatação o perturbou, deu-lhe uma espécie de vertigem.

Na hora de sair, despediu-se de todos. A noiva veio levá-lo até o portão. Ao ser beijada na face, disse:

— E não esqueça: Alicinha é sagrada para você!

Era demais. Doeu-se e protestou:

— Mas que palpite é esse? Que idéia você faz de mim? Sabe que assim você até me ofende?

Cruzou os braços, irredutível:

— Ofendo por quê? Os homens não são uns falsos?

— Eu, não!

Ela replicou, veemente:

— Você é como os outros. A mesma coisa, compreendeu?

FAMÍLIA

Mas quando Dagmar confessou aos pais que advertira o noivo, foi um deus-nos-acuda. A mãe pôs as mãos na cabeça: “Você é maluca?”. Quanto ao pai, passou-lhe um verdadeiro sabão:

— Foi um golpe errado. Erradíssimo!

— Eu não acho.

O velho tratou de ser demonstrativo: “Você pôs maldade onde não havia!

Despertou a idéia do seu noivo!”.

Replicou, segura de si:

— Papai, eu sei muito bem onde tenho o meu nariz.

O pai andava de um lado para outro, nervoso. Estacou, interpelando-a:

— E agora, com que cara teu noivo vai olhar para tua irmã? Vocês, mulheres, enchem! E, além disso, parta do seguinte princípio: uma irmã está acima de qualquer suspeita! Família é família, ora bolas!

E Dagmar, obstinada:

— Meu pai, gosto muito de Alicinha. É uma pequena ótima, formidável e outros bichos. Mas intimidade de irmã bonita com cunhado, não! Nunca!

CIÚMES DOENTIOS

Num instante, criou-se o caso no seio da família. Não houve duas opiniões. Segundo todo mundo, aquilo não era normal, não podia ser normal. Um dos grandes argumentos foi a idade de Alicinha: “Como pode? Como pode?”. O pai, mascando o charuto, argumentava: “Que você desconfie de todo mundo, até de poste, vá lá! Acho que uma mulher deve defender com unhas e dentes o seu homem. Mas irmã é outra coisa! Irmã é diferente!”.

Na sua tristeza, ela replicava: “O que eu não sou é burra!”. E o pai: “Nem sua irmã, nem seu noivo merecem isso!”. Por fim, já se falava, abertamente, em caso. Um primo da pequena, que era pediatra, sugeriu:

— Por que é que não levas fulana a um psiquiatra?

Ela acabou indo, vencida pelo cansaço da própria vontade. Lá, o psiquiatra, depois de um interrogatório medonho, chega à seguinte conclusão: “O negócio é extrair os dentes!”. O pai da pequena caiu das nuvens. Chorou, amargamente, o dinheiro da consulta:

— Mas que animal! Que palhaço! — E, jocoso, criava o problema: — Isso é psiquiatra ou é dentista?

Mas o fato é que, pouco a pouco, sem sentir e sem querer, Dagmar foi se deixando dominar pela pressão da família. O próprio noivo colaborou nesse sentido. Era hábil:

— Você não precisa ter medo de mulher nenhuma. Pra mim, não existe no mundo mulher mais bonita do que você. Palavra de honra!

O MAIÔ

Só quem não se dava por achada e parecia ignorar o disse-que-me-disse era a própria Alicinha. Tratava a irmã e o cunhado com a mesma naturalidade. E era tão sem maldade, tão inocente, que, certa vez, comprou um maiô fabulosíssimo e apareceu com ele na sala, diante de Dagmar e do Geraldo. Foi uma situação pânica. Por um momento, o embasbacado cunhado não soube o que dizer, o que pensar. Empalidecera e... Girando como um modelo profissional, Alicinha perguntava:

— Que tal?

Por uma fração de segundo, Dagmar pensou em explodir. Mas convencera-se de que precisava reeducar-se; dominou o próprio impulso. Com um máximo de naturalidade, admitiu: “Bonito!”. O atônito, o ofuscado, o desgovernado Geraldo gemeu: “Infernal!”. Mas quando deixou a casa da noiva, nesse dia, ia numa impressão profunda. Mais tarde, no bilhar, com uns amigos, fez o seguinte jogo de palavras:

— Não há mulher mais bonita que uma cunhada bonita!

SONSA

No dia seguinte, Alicinha passa por ele e pisca o olho: “Deixei de ser criança! Já não sou mais criança!”. Isso poderia significar pouco ou muito. De qualquer forma, desconcertado, ele chegou a transpirar. Mais dois ou três dias, e Alicinha vai procurá-lo no escritório. Senta-se a seu lado; diz: “Você tem medo de mim?”. O pobre-diabo gaguejou: “Por quê?”. E ela, com um olhar intenso, não de criança, mas de mulher: “Tem, sim, tem!”. Parece divertida. E, subitamente, séria, ergue-se e aproxima-se. Estavam no gabinete de Geraldo. Alicinha inclina-se e pede:

— Um beijo.

Lívido, obedeceu. Roçou, de leve, a face da pequena. Ela insistiu: “Isso não é beijo. Quero um beijo de verdade”. Geraldo levanta-se. Recua apavorado, como se aquela garota representasse uma ameaça hedionda. Numa espécie de soluço, diz: “Eu amo minha noiva! Amo tua irmã!”. E ela, diante dele: “Só um!”. Petrificado, deixou-se beijar uma vez, muitas vezes. E não podia compreender a determinação implacável de uma menina de treze anos.

Antes de sair, ela diria: “Você é meu também!”. E o ameaçou, segura de si e da própria maldade: “Vou te avisando: se começares com coisa, eu direi a todo mundo que houve o diabo entre nós!”. Geraldo arriou na cadeira; uivou:

— Demônio! Demônio!

O BEIJO

Foi, desde então, um escravo da menina. E, coisa interessante: ao mesmo tempo que se sentia atraído, tinha-lhe ódio. Sentia nela uma precocidade hedionda. E, por outro lado, era um fraco, um indefeso, um derrotado. Até que, uma tarde, entra numa delegacia; soluçando, anuncia: “Acabei de matar minha cunhada, Alice de tal, num lugar assim, assim”.

Ainda prestava declarações quando Dagmar invade a delegacia. Passara pelo lugar em que Alicinha fora assassinada; vira a irmã, de bruços, com o cabo do punhal emergindo das costas. Então, fora de si, correu para a delegacia. E houve uma cena que ninguém pôde prever. Avançou, apanhou entre as mãos o rosto do noivo e o beijou na boca, com loucura. Foi agarrada, arrastada. Debatia-se nos braços dos investigadores.

Gritava:

— Oh, graças! Graças!
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A coroa de orquídeas e outros contos de A vida como ela é... / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

Vinte e cinco anos de casados

O amigo foi no escritório buscá-lo:

— Vamos tomar um drinque.

E ele:

— Fica para outro dia. Hoje não posso.

Mas o amigo, que era íntimo, que tinha confiança, fez pé firme:

— Outro dia uma ova! Tem que ser agora! Vamos, põe o paletó, anda!

O dr. Hildegardo pôs o paletó e, tirando os óculos e guardando-os no bolsinho do lenço, foi dizendo:

— Vou chegar tarde em casa! É o diabo!

— Por quê, ora essa?

E ele, entrando no elevador:

— Minha mulher não gosta! Minha mulher fica tiririca!

Dirigiram-se para o bar da esquina, sentaram-se lá. Enquanto o garçom os servia, pensava na mulher, na cozinheira e na filha. E, depois de beber um e mais outro, o dr. Hildegardo estalou a língua e, com certa euforia, fez a revelação envaidecida:

— Estou casado há vinte e cinco anos. E nunca traí minha mulher.

— Nunca?

Repetiu, já inspirado pelo terceiro drinque:

— Nunca.

O MARIDO FIEL

O amigo não acreditou: exaltou-se, até:

— Não existe homem fiel! Nunca existiu!

— Pois eu sou. Fidelíssimo. Te juro, te dou minha palavra de honra. E te digo mais: no fim do mês comemoro minhas bodas de prata. Estás convidado!

— O homem fiel é uma besta! Podia andar de quatro, trotar no meio da rua!

Meia hora depois, dr. Hildegardo teve um lampejo, no fundo de sua embriaguez; catou o relógio; espiou os ponteiros: “Oito horas!”. Gemeu: “Minha mulher deve estar bufando!”. Pagou a despesa, arrastou o amigo: “Vais comigo. Tens que ir! Minha mulher me mata!”. O amigo foi, resmungando, mas foi; entraram num táxi e, durante toda a viagem, o assunto pouco variou. Dr. Hildegardo, em pânico, excitava o chauffeur. “Mete o pé, com apetite!”. De repente, bate na testa:

— Vais me fazer um favor, de mãe pra filho.

— Qual?

E ele:

— Vais dizer a minha mulher que já jantaste.

— Ué!

Debruçado no ombro do outro, num bafo de bêbado, ia explicando:

— Pelo seguinte: minha mulher não gosta que eu leve ninguém pra jantar. Não topa. Nem ela, nem a cozinheira. Estrilam.

O outro arregalou os olhos:

— Já vi tudo!

O JANTAR

Entraram em casa, preocupadíssimos. Mesmo o amigo contagiara-se do terror e do sentimento de culpa. D. Odete, assim que viu o marido, nem ligou para o acompanhante. Via-se logo que era uma senhora distintíssima. Dr. Hildegardo estacou; e ela, pondo as mãos nos quadris e depois de olhá-lo de alto a baixo, balançou a cabeça:

— Sim, senhor!

O marido, quase normalizado do impacto da mulher, arremessou-se. Deu-lhe dois beijos estalados, um em cada face. Engrolou uma explicação qualquer, relativa a um negócio misterioso e imprevisto. Ela, ressentida, interpelava-o:

— Isso são horas?

A filha sussurrava para o namorado:

— Papai é um caso sério!

Dr. Hildegardo pendurava-se no ombro da esposa: — “Trouxe um amigo, filhinha, mas ele já jantou!”. Então, a esposa, satisfeita com o sabão passado no marido, condescendeu em ser apresentada ao amigo que já jantara. A cozinheira, fula, batia com todas as tampas de panela. E d. Odete invocou o testemunho do visitante:

— Imagine o senhor, se é possível! Isso não é hora de jantar! Minha cozinheira fica por conta e com razão, com toda razão!

O amigo, que se chamava Bezerra, com um sono de bêbado, rosnou:

— Realmente... Realmente...

Durante o jantar, o dr. Hildegardo fez a corte à mulher, da maneira mais servil e deslavada. Batia nos peitos: “Sou um cara de sorte, seu Bezerra! Minha mulher é uma santa!”.

Insistiu com o amigo:

— Estás convidado para as bodas de prata!

A SERPENTE

No dia seguinte, o Bezerra compareceu ao escritório do dr. Hildegardo; baixou a voz:

— É sério aquilo que me disseste? É batata?

O dr. Hildegardo confirmou, categórico:

— Mas evidente. E trair minha mulher por quê? A título de quê?

— Realmente, realmente.

Dr. Hildegardo ergueu-se. Ficou andando de um lado para o outro, no gabinete, na comovida emoção de sua felicidade matrimonial:

— Vinte e cinco anos não são vinte e cinco dias. O maior golpe que eu dei na minha vida foi o casamento. Um alto negócio! Aquilo já não é esposa, é mãe, é o diabo!

O Bezerra, que estava afundado na poltrona, levantou-se; hesitou, antes de fazer a sugestão:

— Olha aqui; hoje eu vou passear com duas fulanas. Uma é minha, claro; mas a outra não tem companhia. Que tal?

Aproximou-se mais do amigo; segredou, numa tentação: “Material de primeira!”. Dr. Hildegardo recuou, como se duvidasse da própria vista e dos próprios ouvidos:

— Mas você tem coragem, fulano? Conhecendo minha mulher e sabendo que eu, nunca, Ouviste, jamais? Você se esquece que no fim do mês comemoro as bodas de prata? Francamente!

O amigo explodiu:

— Deixa de ser besta, Hildegardo, tira o cavalo da chuva! Que é que tem? Todo mundo faz isso! Em matéria de amor, qualquer homem é um canalha!

— Eu, não! Eu, absolutamente! Ora veja! E digo mais: no terreno sexual, só tolero uma posição, a clássica, a tradicional. Sou do “papai-mamãe” rasgado.
O outro, porém, insistiu numa obstinação quase indecente; seus conselhos tinham o seguinte nível: “Só uma vez, seu imbecil! A pequena é um pirãozinho”. Dr. Hildegardo, já transpirando, resistia: “Não! Nunca!”. Novos argumentos e, por fim, a exaltação. O Bezerra segurava, com as duas mãos e pela gola, o amigo indefeso: “Escuta, ó cara! O sujeito que só conhece uma mulher é um cretino! Tenha vergonha!”. Quarenta minutos depois, o derrotado dr. Hildegardo telefonava para casa: “Filhinha, imagina só o abacaxi. Estou tão amolado! Apareceu um negócio importante, de forma que eu não posso jantar...”. Quando desligou, virou-se para o amigo, que, do lado, numa satisfação inteiramente gratuita e torva, esfregava as mãos; e disse, com ar de mártir:

— Estás querendo ver minha caveira. No duro que estás!

Desceu do elevador com o amigo, rumo à primeira infidelidade, com o ar típico e insofismável do condenado à morte; gemia: “Estou metendo os pés em vinte e cinco anos de felicidade”.

A OUTRA

No dia seguinte, era o próprio dr. Hildegardo quem andava atrás do Bezerra; assim que o encontrou, fez a pergunta sôfrega: “Vamos lá outra vez?”. O amigo exigiu um relatório: se tinha gostado; se o material era ou não um grande material; se a fulana era um pirãozinho ou... Dr. Hildegardo, evocativo, maravilhado, dava o seu depoimento autorizado: “É muito liga, sim; uma grande praça”. O outro o cutucava:

— Não te disse? Vai por mim, que você vai bem! Aproveita!

Foram lá essa vez e mais outras. De quando em quando tinha crises morais: “Mas não está direito! Eu amo a minha mulher”. Um dia, beberam juntos, dr. Hildegardo e o Bezerra. E este, depois de entornar vários chopes, teve uma sinceridade feroz de ébrio: “Tua mulher é uma jararaca! Um bucho!”. Dr. Hildegardo, então, chorou. E houve, na mesa do bar, entre eles uma polêmica de bêbados. O marido pretendendo que a esposa era uma santa, uma mãe — uma adoração de mulher.

AS BODAS DE PRATA

Enfim, chegou o dia das bodas de prata. O Bezerra estava lá, firme e grave. Vieram parentes até do Norte. O namorado da filha única do casal compareceu também, de azul-marinho. E, quando não faltava mais ninguém, dr. Hildegardo, no meio da sala, fez um gesto; e pediu: “Silêncio! Silêncio!”. Todos se calaram; pensou-se num discurso. E então, o dr. Hildegardo, em voz bem alta e nítida, disse:

— Comunico que, neste momento, deixo esta casa!

Silêncio profundo, enquanto cada um dos parentes ia assimilando o fato. A primeira a reagir foi d. Odete: caiu dura. Houve um tumulto na casa toda. As hipóteses estavam no ar, vivas: loucura? Embriaguez? Pilhéria? Mas já o dr. Hildegardo, seguido do triunfante Bezerra, varava a muralha dos convidados, a caminho da porta, atropelando as senhoras enchapeladas. A filha tinha um desmaio. E o futuro genro se arremessava, no encalço do sogro. Na calçada, o rapaz o alcançou; balbuciou a pergunta: “Mas que foi que houve? Não faça isso!”. Então, o dr. Hildegardo abriu-se:

— O que houve foi o seguinte: há vinte e cinco anos que minha mulher me faz de palhaço! E chega! Uma chata!

— Mas sua filha?

Dr. Hildegardo, que já ia mais adiante, estacou: “Ah, sim, a filha!”. Veio ao encontro do genro:

— Queres um conselho, rapaz? Manda a minha filha passear. Puxou ao gênio da mãe, imagina! Vai no meu golpe; deixa de ser burro! Chuta a minha filha!
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A coroa de orquídeas e outros contos de A vida como ela é... / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

Terence Fisher

Terence Fisher, cineasta britânico, que atuou principalmente regendo filmes da Hammer Films, nasceu em 23 de fevereiro de 1904 em Maida Vale (Londres) e faleceu em 18 de Junho de 1980 em Twickenham. Seu pai morreu quando ele tinha quatro anos de idade, ficando sua educação a cargo de sua mãe e avós.

Seus avôs de férreas tradições vitorianas o matriculam, contra sua vontade, em uma escola militar. Porém se alista na marinha mercante, como aprendiz a bordo do H. M. S. Conway, onde percorrerá o mundo durante cinco anos. Após regressar a Londres trabalha como empregado numa loja de tecidos.

Para se distrair começa a freqüentar os cines. Maravilhado com o que vê na tela, decide trabalhar na indústria cinematográfica a qualquer custo.

Em 1930 foi trabalhar na Shepard’s Bush Studios como editor, mas apenas iria dirigir seu primeiro filme em 1948, A Song for Tomorrow. Mas foi na Hammer Films que o diretor conseguiria seus mais importantes filmes. Já trabalhara para a Hammer Films em 1933 nos primeiros filmes de ficção-científica da produtora, Four-Sided Triangle e Spaceways.

Em 1957 juntou-se ao roteirista Jimmy Sangster e aos atores Peter Cushing e Christopher Lee para refilmar Frankenstein, o clássico da Universal Pictures. Tendo Cushing como o doutor Frankenstein e Lee como a criatura (totalmente deformada, pois a produção não pode contar com as formas da criatura imortalizadas por Boris Karloff, cuja patente pertencia à Universal Pictures), o filme foi um enorme sucesso.

A mesma equipe foi reunida outra vez para, no ano seguinte, filmar O Vampiro da Noite, que superou todas as expectativas e seu estupendo sucesso colocou os filmes de terror outra vez no cenário cinematográfico mundial, tendo a Hammer Films como sucessora da Universal Pictures neste terreno – tanto que esta última, em acordo, cedeu os copyrights de seus monstros para que a Hammer produzisse seus filmes.

Estas duas obras dirigidas por Fisher praticamente definiram as produções de terror até a década de 70. Além da introdução das cores neste tipo de filme, a sensualidade era também mais destacada, com a constante presença de lindas mulheres com decotes bastante provocantes e, quase sempre, com seios grandes.

Os monstros também eram apresentados de maneira direta, diferentemente do que acontecia nos filmes da Universal Pictures, sempre envolvidos com problemas com a censura e com a distribuição. Mesmo assim, Fisher impunha um rígido código moral nas suas obras: o mal era sempre derrotado no final. Fisher aproveitou-se das novas condições morais menos rígidas e das novas tecnologias cinematográficas para renovar o universo de terror.

Fisher foi, sem dúvida, um dos diretores de filmes de terror mais influentes da segunda metade do século XX. Primeiro a imprimir o estilo gótico com a tecnologia a cores da Technicolor, com ênfase no sangue, na sensualidade e horror explícito que, se hoje parecem moderados, foram uma inovação em seu tempo.

Apesar de sua temática ser sombria e escatológica, seus filmes foram comercialmente bem sucedidos, mesmo que a crítica sempre o desdenhasse, ao longo de sua carreira. Somente após sua morte é que houve um justo reconhecimento por seus trabalhos.

Seu estilo pode ser definido como próprio, uma mistura de contos de fadas, mitos e sensualidade. Ao longo disso, uma temática cristã está fortemente presente, onde as forças do mal são derrotadas por um herói através da combinação da fé em Deus com a razão, em contraste com outras personagens que ou são bastante supersticiosos ou céticos, como observou o crítico Paul Leggett (in: Terence Fisher: Horror, Myth and Religion, 2001).

Uma completa análise de seus trabalhos foi feita na obra "The Charm of Evil: The Films of Terence Fisher" de Wheeler Winston Dixon (Londres, Scarecrow Press, 1991).

Principais filmes

1947 - Colonel Bogey
1948 - To the Public Danger
1948 - Song for Tomorrow
1948 - Portrait From Life
1949 - Marry Me!
1949 - The Astonished Heart (co.)
1950 - So Long at the Fair (co.)
1951 - Home to Danger
1952 - The Last Page
1952 - Wings of Danger
1952 - Stolen Face
1952 - Distant Trumpet
1953 - Four Sided Triangle
1953 - Mantrap
1953 - Spaceways
1953 - Blood Orange
1953 - Three's Company (co.)
1954 - Face the Music
1954 - The Stranger Came Home
1954 - Mask of Dust
1954 - Final Appointment
1954 - Children Galore
1955 - Murder By Proxy
1955 - The Flaw
1955 - Stolen Assignment
1956 - The Last Man to Hang?
1957 - Kill Me Tomorrow
1957 - he Curse of Frankenstein
1958 - Horror of Dracula
1958 - The Revenge of Frankenstein
1959 - The Hound of the Baskervilles
1959 - The Man Who Could Cheat Death
1959 - The Mummy
1959 - The Stranglers of Bombay
1960 - The Two Faces of Doctor Jeckyll
1960 - The Brides of Dracula
1960 - The Sword of Sherwood Forest
1961 - The Curse of the Werewolf
1962 - The Phantom of the Opera
1962 - Sherlock Homes und das Halsband des Todes
1964 - The Horror of It All
1964 - The Gorgon
1964 - The Earth Dies Screaming
1966 - Dracula - Prince of Darkness
1966 - Island of Terror
1967 - Frankenstein Created Woman
1967 - Night of the Big Heat
1968 - The Devil Rides Out
1969 - Frankenstein Must Be Destroyed
1974 - Frankenstein and the Monster from Hell

Fontes: Terence Fisher; Wikipédia; e traduzido da"Biografía de Terence Fisher"

Pai por um cheque

O pai, seu Alfredo, tinha uma frota de trezentos lotações, rodando dia e noite pela cidade. Era um homem rico, muito rico, milionário. No dia em que a filha ficou noiva, ele, numa satisfação bárbara, a chamou:

— Vem cá, minha filha, vem cá.

Diga-se de passagem que seu Alfredo, em que pese a sua fortuna imensa, tinha instrução primária e era de origem bem humilde. Sabia fazer três das quatro operações: somar, diminuir e multiplicar. Dividir, não; aos cinqüenta anos de vida, não sabia ainda dividir. Por outro lado, seus modos ou, por outra, sua falta de modos clamava aos céus. Tinha uma educação mais que discutível. E não faltava quem, despeitado com a sua prosperidade, rosnasse: “É um cavalo!”.

Pois bem, no dia em que sua filha, Dorinha, ficou noiva do dr. Fernando, ele a convocou: “Tudo bem, minha filha? Tudo OK?”. A menina suspirou: “Tudo!”. Mascando um charuto infecto, o velho olhava em torno: “Não está faltando nada?”. Num gesto grosseiro, bateu no bolso, e insistia:

— Dinheiro há! Dinheiro há! Se quiserem alguma coisa, é só pedir. O que tu queres? Fala! Queres alguma coisa?

Dorinha vacila. E, então, diante do pai, sonha em voz alta:

— Papai, o senhor sabe qual é a coisa que eu mais desejo na vida? Sabe?

— O que é?

E ela:

— Um filho. Quero, sempre quis um filho, ouviu, papai?

Seu Alfredo esfrega as mãos:

— Mas isso é pinto, é canja, minha filha. — E repetia: “É o de menos. Casa e pronto, compreendeste? Batata, minha filha, batata!”.

FLOR DE MENINA

Havia entre pai e filha um contraste de arrepiar. Enquanto seu Alfredo representava uma espécie de gângster, de Al Capone dos lotações, Dorinha era uma figurinha frágil, delicada, ou, como diziam, um biscuit. Aprendera nos melhores colégios, sabia correntemente o francês, o inglês, bordava com um gosto de fada e era uma pianista de mão cheia. Aos dezesseis anos, apaixonara-se pelo advogado da companhia do pai, o dr. Fernando, rapaz bonito, vagamente afetado, que beijava a mão das senhoras e tinha sempre o ar de quem lavou o rosto há dez minutos. Mas a sua característica que mais impressionava e deslumbrava o sogro era a seguinte: chovesse ou fizesse sol, o dr. Fernando andava de colete e polainas. De resto um homem que sabia viver. Seu Alfredo, com sua contundente falta de tato e sua bestial espontaneidade, dizia abertamente:

— Gosto de meu futuro genro porque é um puxa-saco! Geralmente, o puxa-saco dá um marido e tanto!

Presunção, como se vê, um tanto precária. Mas o fato é que o noivado ia de vento em popa. Seu Alfredo vivia açulando as mulheres da família:

— Quero um casamento de arromba! Gastem sem pena, nem dó! — E mostrava a carteira recheada, repetindo: “Dinheiro há! Dinheiro há!”.

O NETO

No dia do casamento, foi até interessante e impróprio. Seu Alfredo, sem nenhuma noção da própria inconveniência, dava tapas imensos nas costas do genro:

— Quero um neto, ouviu? Um neto caprichado! A jato!

Ria, ao clamar a pilhéria. E tinha, mal comparando, um riso grosso e soluçante de cachorro de desenho animado. Os convidados riram também. Mas um vizinho, aliás um frustrado, cochichou ao ouvido de outro: “Que animal!”. Referia-se, é claro, ao destemperado dono da casa. Muito bem. Na altura da meia-noite, partem os noivos para a lua-de-mel. Mas antes que o automóvel arrancasse seu Alfredo enfiou o carão no interior do carro:

— Olha o meu neto! Quero o meu neto!

E o genro grave:

— Perfeitamente, perfeitamente.

CALAMIDADE

No fim de uns vinte dias, voltou o casal. A mãe, d. Eduarda, de olho rutilante, quer saber: “Tudo bem, minha filha?”. Tudo bem, sim. Todavia, a pequena parece inquieta: “Mamãe, o negócio é o seguinte: eu ainda não estou sentindo nada”. D. Eduarda acha graça: “Ainda é cedo. Calma, minha filha, calma!”. No dia seguinte, dr. Fernando vai reassumir o cargo na firma. O sogro, porém, quase irritado, mandou-o de volta:

— Não, senhor! Em absoluto! O seu lugar é ao lado de sua esposa!

O outro reluta: “E o emprego?”. Seu Alfredo trovejou:

— Você agora só tem o emprego de marido de minha filha. Só. Percebeu?

Como resistir a um sogro que tinha trezentos lotações rodando, independentemente de prédios, avenidas, terrenos, o diabo? O velho veio trazê-lo, cordialmente, até a porta. Olha para os lados, e baixa a voz:

— O negócio do meu neto está caminhando direitinho? Ótimo! E olha: no dia em que o médico disser que é batata, tu passas por aqui, que eu te dou um cheque de cem mil cruzeiros, pra teus alfinetes!

DECEPÇÃO

O tempo passou. No fim de quatro meses, a decepção era trágica: nada, absolutamente nada. Dorinha voltava de suas visitas mensais ao médico numa depressão medonha: “Minhas amigas têm filhos até em pé. E eu não, por quê?”. O sogro perdeu a paciência com o genro: “Mas o que é que há contigo, rapaz? Estás dormindo no ponto?”. Metido no seu eterno colete, nas suas indescritíveis polainas, dr. Fernando abria os braços: “Não compreendo”. A título de espicaçá-lo, o velho piscava o olho:

— Sou homem de uma palavra só. Disse que te dava cem contos por neto, não disse? Pode contar. É dinheiro em caixa!

Desesperado, dr. Fernando corre a um médico: faz todos os exames. E recebe um impacto quando o médico, batendo no seu ombro, anuncia:

— Não pode ter filho, ouviu? Não pode.

DESESPERO

Dr. Fernando teve medo da reação da mulher, dos sogros. Guardou para si, só para si, o resultado. Com um descaro que as circunstâncias impunham, simulava um espanto imenso: “Mas eu não posso compreender!”. Verificava-se o seguinte: a lânguida, meiga, diáfana Dorinha tinha uma única e selvagem paixão: a maternidade. Queria ser mãe, eis tudo. Acuado pelo sogro, dr. Fernando refugiava-se na seguinte desculpa: “Mas eu não posso fazer milagres!”.
O sogro partiu para ele, de dedo espetado: “Fazer filho não é milagre, nunca foi milagre, seu bestalhão!”.

O FIM

Transcorreu mais um ano. Dr. Fernando andava, em casa, pelos cantos, numa humilhação treda e torva. Quanto a Dorinha, perdera o viço, a alegria de viver, petrificada no seu desgosto. E, de repente, acontece realmente o milagre: Dorinha vai ao médico e volta com a grande notícia: “Estou, estou!”. No delírio geral, houve uma única exceção: a do pai presuntivo, que, sentado, as duas mãos em cima dos joelhos, esbugalhou os olhos, incapaz de uma palavra. Finalmente, ele ergue-se: vira-se para a mulher: “Vou dar a notícia pessoalmente a teu pai”.

Apanha o automóvel e voa para a firma de lotações. Salta lá, precipita-se para o gabinete do velho. Seu Alfredo teve um choque tremendo. Abraçou-se chorando ao genro: determinou que se encerrasse o expediente mais cedo. Enfim, um autêntico carnaval.

Finalmente, vira-se para o rapaz: — “Eu te prometi quanto mesmo? Cem, não foi?”. Então, o genro aproxima-se e, com um meio riso ignóbil, conta-lhe o exame feito no médico: “Não posso ser pai, compreendeu?”. Respira fundo e completa:

— Nessas condições, quero mais. Acho pouco cem. Trezentos, no mínimo.

O velho levantou-se, assombrado. Súbito, pôs-se a berrar:

— Ah, não é teu? O filho não é teu? Então, tu não vais levar um níquel, um tostão! Agora, rua, ouviu? Rua!

O genro saiu de lá, debaixo de pescoções.
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A coroa de orquídeas e outros contos de A vida como ela é... / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

Amigo de infância

Quando soube que o Antunes estava de táxi na porta, desceu para o avisar:

— Mas olha: eu estou assim, de pijama, e ainda vou tomar banho.

Antunes, fumando de piteira, entra, senta-se:

— Não faz mal. Eu espero. Mas chispa.

— Agüenta a mão.

O outro ficou na sala, lendo jornal. Debaixo do chuveiro, esfregando-se briosamente, Chagas perguntava a si mesmo: “Que será?”. Tomou o banho e vestiu-se, num tempo recorde. Antes de descer, já pronto, num terno branco, comentou para a mulher, baixo: “Estou achando meio esquisito esse negócio do Antunes aparecer aqui cedo. É alguma complicação!”. Julinha fez um ar de nojo:

— Sabe que eu acho o Antunes tão chato!

— Que o quê! Ótimo sujeito! Meu amigo até debaixo d’água!

Mas Julinha, peremptória como são as mulheres nas suas antipatias, ainda resmungou: “Um falso!”. Cinco minutos depois, Chagas instalava-se no táxi do Antunes, lado a lado com o seu maior amigo. Curiosíssimo, indaga:

— Qual é o drama?

O DRAMA

Colocando outro cigarro na piteira, Antunes responde com uma pergunta:

— Confias na tua mulher?

— Como?

— Pergunto se confias na tua mulher.

Pálido, encarava Antunes. Pausa. Interpelou o amigo:

— Mas que palpite é esse? Por que essa pergunta?

Antunes não respondeu imediatamente. Com o dedo mindinho, batia na cinza do cigarro. Sereno e metódico, começou:

— Bem. O negócio é o seguinte. Tu sabes que és meu do peito, não sabes?

— Toca o bonde.

Continuou:

— E eu sou um sujeito nessas condições: se há uma coisa que eu levo a sério, na vida, é a amizade. Pra mim, o amigo está acima de tudo. Acima de dinheiro, de mulher e outros bichos. E eu soube de um negócio e...

Trincando os dentes, Chagas exigiu:

— Desembucha.

E Antunes, implacável:

— Chagas, tudo me faz crer que tua mulher, que Julinha, te trai.

Durante uns dois, três minutos, houve um silêncio entre os dois. Chagas repetia mentalmente: “Julinha me trai... Julinha me trai...”. Súbito, vira-se para o amigo. Está branco:

— Quero provas.

— Provas, como?

Repetiu, na sua cólera contida:

— Provas. Você acusa minha mulher. Muito bem. Deve ter provas. Onde estão?

O outro parecia desconcertado:

— Mas, Chagas! É muito difícil provar essas coisas. Só se eu fosse olhar pelo buraco da fechadura.

Chagas insistia, numa calma apavorante:

— Se você provar, muito bem. Mas se não provar, eu juro por tudo, por essa luz que me alumia, você está desgraçado comigo.

Quando saltaram, no mesmo lugar, porque trabalhavam no mesmo edifício, Antunes suspirou:

— Escuta, Chagas. Você faça o que quiser. Cumpri meu dever e pronto.

OS INIMIGOS

Era o fim de uma amizade que durava, ao longo dos anos, desde a infância. Chagas entrou no emprego doente. Pensava: “Devo estar com febre”. Sentado na cadeira giratória, procurava reconstituir, de cabeça, toda a sua vida conjugal. Numa meditação ardente e obstinada, tentava lembrar-se de um gesto, de uma palavra, de uma frase de Julinha que pudesse sugerir a existência de um amante. Sua memória, porém, não a acusava de coisa alguma. Quatro anos depois do casamento, a pequena era a mesma mulher, sempre igual a si mesma, duma ternura que não mudava. Na hora do lanche, Chagas vira-se para um companheiro. Faz a confidência gratuita:

— Pela primeira vez, eu conheço o ódio. Pela primeira vez eu sei o que é odiar.

E, de fato, odiava Antunes. Por outro lado, descobria que há no ódio mais obstinação, mais exclusividade, mais fidelidade do que no amor. Só se pode odiar uma pessoa. E Chagas pensava em Antunes segundo a segundo, minuto a minuto. Nessa tarde, saiu mais cedo e desceu ao andar onde o outro trabalhava. Sentou-se a seu lado. Perguntou:

— Aquilo que tu me contaste. Tens certeza ou é desconfiança?

— Certeza.

— Absoluta?

— Absolutíssima.

Devia bastar. Mas Chagas teimou:

— Certeza como? Certeza por quê? Tu mesmo não disseste que certeza, nesses casos, só mesmo olhando pelo buraco da fechadura?

Antunes pôs-lhe a mão no ombro:

— Eu não olhei pelo buraco da fechadura, claro. Mas...

— Fala!

Baixou a voz:

— Mas vi, com meus próprios olhos, eu vi a tua mulher entrando num lugar assim, assim, no Leblon.

Chagas ergueu-se. Andou de um lado para outro. Sentou-se outra vez. E quis saber: “Explica uma coisa. Por que me contaste isso? Por quê?”. O outro foi lacônico:

— Achei que era meu dever de amigo.

Desesperado, protestou:

— Dever como? Dever por quê, carambolas? Ora, tu não sabes que minha mulher é tudo para mim, absolutamente tudo?

Antunes inclinou-se. Sem desfitá-lo, explicou:

— Eu não quis que bancasses o palhaço. Por isso contei.

A PROVA

E, então, a vida de Chagas mudou por completo. Não fazia a barba, não tomava banho, não mudava a camisa. Perdera todo o capricho; ou, por outra, só caprichava no desleixo. Tinha uma espécie de orgulho, de vaidade, de parecer um maltrapilho, um miserável. Julinha, impressionada, pedia: “Faz a barba ao menos, criatura!”. Ele ria, amargo; respirava fundo:

— Há coisas mais importantes do que a barba!

Todos os dias, conversava com Antunes, embora o odiasse cada vez mais. Uma tarde explodiu:

— Ah, se isso fosse uma calúnia, uma mentira tua, sórdida!... — Soluçava: “Eu te agradeceria de joelhos, se tivesses mentido, se tivesses caluniado a minha mulher!”.

O outro encarniçava-se:

— É verdade! Juro que é verdade! Quero que Deus me ce¬gue se minto! Tens que tirar esta mulher de tua vida! Não admito que um amigo meu banque o palhaço!

Rápido, Chagas levantou-se. Segurou o outro pelos dois braços e o sacudia: “Eu só acredito vendo! Tua palavra não basta!”. Sem medo, com uma determinação de amigo fanático, Antunes replicou:

— Eu incumbi uma pessoa de acompanhar os passos de tua mulher. Tu verás.

VINGANÇA

Uma semana depois, Antunes telefona para Chagas: “Olha, eu soube, pela tal pessoa, que tua mulher, hoje, às quatro da tarde, vai ao Leblon”. Às três horas, os dois partem de táxi para o local. Durante a viagem, Chagas ia dizendo, numa obsessão: “Por que não me deixaste iludido? Ela me enganaria sempre e eu não saberia nunca!”. Ria, entre lágrimas: “Nenhum marido precisa saber! Saber pra quê?”. E confessava: “Eu nunca farei nada contra a minha mulher, nunca! É absolutamente sagrada para mim. Por que não me deixaste ser traído em paz?”. O outro respondeu, lacônico:

— Sou teu amigo. — E repetia: “Ponho o amigo acima de tudo”.

Às quatro horas, Chagas estava no táxi espiando a porta central do edifício. Viu quando a mulher descia, de outro táxi, acompanhada. A seu lado, Antunes exultou:

— E agora? Viste ou não viste com teus próprios olhos? Não foi batata o que eu te disse? Foi ou não foi?

Então, arquejante, a boca torcida, Chagas virou-se para o delator. Disse:

— Eu te perdoaria se tivesses mentido, se tivesses caluniado. Mas não mentiste, nem caluniaste. Disseste a verdade. E eu não te perdôo a verdade.

Deu-lhe dois tiros, à queima-roupa. E ainda puxou o gatilho, uma terceira vez, para acabar de matar o homem que não mentira.
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A coroa de orquídeas e outros contos de A vida como ela é... / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

Sam Raimi

Sam Raimi (Samuel M. Raimi), nasceu em 23 de outubro de 1959 em Franklin, Michigan, nos Estados Unidos. Diretor, produtor, roteirista e ator, é filho de Leonard Raimi, proprietário de uma loja de móveis, e de Celia Raimi, uma empresária.

Desde sua tenra juventude e com uma câmara de 8 mm Raimi realizou seus primeiros curtas como narrador de histórias, prediletamente dos tipos fantásticos e de humor, imitando os filmes dos "Três Patetas" (Three Stooges).

Após concluir a escola secundária matriculou-se na Universidade de Michigan State, na qual conheceu Robert Taper e Bruce Campbell, que se converteria em seu ator predileto. Com ambos criou a produtora Reinassance Pictures.

No final dos anos 70 realizou seus primeiros curtas, como “It’s murder!” (1977), “Within the woods” (1978) e “Clockwork” (1978), fitas de terror com retalhos de comédia que exibiam sua destreza em efeitos visuais com um vigoroso emprego do movimento da câmara.

No começo dos anos 80 realizou seu primeiro longa-metragem, "Uma noite alucinante" - "A Morte do Demônio" (Evil dead, The, 1982), uma fita de terror que lhe valheu aplausos no Festival de Cannes.

Posteriormente apareceu como ator em "Dois heróis bem trapalhões" (Crimewave, 1985), uma comédia dirigida por seu bom amigo John Landis. "Uma noite alucinante 2" (Evil dead 2), em 1987, seqüência de "Uma noite alucinante" - "A morte do demônio", devolveu o sucesso a Raimi depois do fiasco comercial de seu prévio trabalho, graças ao tom de paródia, ao sentido "cartoon" empregado no relato e ao estilizado processo narrativo.

No final dos anos 80 produziu fitas de terror como “Mondo Zombie” (1989) de J. R. Bookwalter ou “Easy wheels” (1989), filme cult que também escreveu (com o pseudônimo de Celia Abrams) junto com seu irmão Ivan e o diretor David O’Malley. “Darkman” (1990), título do filme de ficção científica protagonizado por Liam Neeson faz com que alcance grande sucesso como diretor cinematográfico.

Posteriormente rodaria a comédia de terror e aventura "Uma noite alucinante 3" (Army of darkness) (1993), terceira da séria iniciada com "Uma noite alucinante" - "A morte do demônio" com Campbell repetindo o papel de Ash J. Williams. No mesmo ano da estréia de "Uma noite alucinante 3" Sam se casa com Gillian Greene, filha do ator Lorne Green, conhecido por ter se protagonizado na série “Bonanza”.

A década terminaria para Raimi com o western "Rápida e mortal" (Quick and the dead, The) (1995), "Um plano simples" (A simple plan, 1998), thriller baseado na novela de Scott B. Smith, e "Por amor" (For love of the game, 1999), fita romântica ambientado no mundo do beisebol, adaptado de um livro de Michael Shaara.

Neste período também colaborou com os irmãos Coen escrevendo o roteiro do filme "The Hudsucker Proxy" (1994). Depois de "O dom da premonição" (Gift, The, 2000), um thriller escrito por Billy Bob Thornton, Sam Raimi rodou seu filme que mais rendeu nas bilheterias, adaptado das revistas em quadrinhos, "Homem-Aranha" (Spiderman, 2002),que contava como ator principal Tobey Maguire. Posteriormente apareceria suas seqüências, “Spiderman 2” (2004) y "Spiderman 3" (2007).

Filmografia (como diretor)

2007 - Homem-Aranha 3 (Spider-man 3)
2004 - Homem-Aranha 2 (Spider-man 2)
2002 - Homem-Aranha (Spider-man)
2000 - O dom da premonição (Gift, The)
1999 - Por amor (For love of the game)
1998 - Um plano simples (A simple plan)
1995 - Rápida e mortal (Quick and the dead, The)
1993 - Uma noite alucinante 3 (Army of darkness)
1990 - Darkman - Vingança sem rosto (Darkman)
1987 - Uma noite alucinante 2 (Evil dead 2)
1985 - Dois heróis bem trapalhões (Crimewave)
1982 - Uma noite alucinante - A morte do demônio (Evil dead, The)
1978 - Clockwork
1978 - Within the woods
1977 - It's murder!

Fonte: Adictosalcine.com - Sam Raimi.